Nunca compreendi tão bem esse conto do José Saramago como hoje. O
livro chama-se “O conto da ilha desconhecida”. Ganhei esse livro há
alguns anos, tinha lido na época, e recentemente o reli. A releitura
mostrou-me aspectos que tinham passado quando o li da primeira vez, mas
somente a vida real mesmo me fez compreender essa frase – “É necessário
sair da ilha para ver a ilha” – que tantas vezes é compartilhada em
redes sociais, displicentemente, sem que quem compartilha consiga
compreender a profundidade dela. Até porque, a frase faz parte do conto e
fica um tanto quanto desprovida de seu sentido quando pinçada e tirada
de seu contexto.
O conto é sobre um homem que resolve pedir ao rei uma embarcação para
sair em busca de uma ilha desconhecida. No entanto, conforme descrito
no conto, todos sabem que não há mais ilhas desconhecidas. Todas as
ilhas já foram devidamente descobertas e mapeadas, catalogadas, conforme
se espera. O homem, no entanto, insiste e diz que não vai sair de
frente do castelo se o rei não conceder a ele a embarcação para sair em
busca da tal ilha. Como há muitas pessoas fazendo pedidos ao rei e
aquele homem ameaçava a ordem e a paz do reino, o rei cede e fornece a
embarcação. O homem, então, vai ao barco, acaba arrumando a companhia de
uma mulher que trabalhava no castelo, mas que também anseia deixar essa
ilha conhecida em busca da ilha desconhecida, e parte em sua busca. E
eis que no final, eles dão ao barco o nome de Ilha Desconhecida.
Quando li a primeira vez achei estranho e sem graça esse final. Ora,
eles queriam encontrar uma ilha ou um barco? O barco era a ilha? Essa
releitura que fiz me mostrou o que não compreendi na primeira vez que
li. O barco é a ilha desconhecida, porque a ilha desconhecida é a nossa
vida, somos nós.
Ele ia partir dessa “ilha conhecida”, de scripts prontos, já
pré-formatada que vivemos, em busca da vida que ele queria construir e
viver, do caminho que ele queria traçar e seguir. Em busca da
construção, por ele mesmo, por suas próprias mãos, de sua vida, de seu
caminho, de seu percurso. Ele é a ilha desconhecida. Somos todos ilhas
desconhecidas.
O que o conto nos diz de forma muito inteligente é que sim, há ilhas
desconhecidas, muitas, diversas. Não estão todas mapeadas, o caminho a
se seguir não está no mapa, não está pré-traçado. Mas, por que é preciso
sair da ilha para ver a ilha? Ora, porque estando na ilha você não
consegue, mesmo, ver que há opções. Só conseguimos ver que há uma ilha
quando assistimos à história de fora, quando vemos todos os personagens e
cenários, quando percebemos que temos participação ativa nessa
história, que somos na verdade os protagonistas dela.
Que não somos personagens que vivem scripts. Que temos nosso papel e
que podemos e devemos assumir o controle da nossa embarcação, da nossa
vida, da nossa ilha desconhecida. Que só conhecendo a ilha, conhecendo
nós mesmos, conseguimos esse protagonismo. Entendemos que podemos e
devemos tomar o controle da embarcação e que se errarmos o rumo, não
calcularmos direito os provimentos, se não conseguirmos manter o barco
firme durante as incontáveis e imprevisíveis tempestades, somos nós que
sofreremos as consequências e teremos que lidar com elas. Não é o rei.
Não é o reino. Somos nós. Sou eu. É você.
Somos todos ilhas desconhecidas. O que aprendi recentemente a duras
penas é que a saída da ilha para ver a ilha é um processo pessoal e
intransferível. Não há como convencer alguém a ver a ilha de fora,
porque a pessoa não vê a ilha. Na maioria das vezes, a tendência é ela
achar que você está louco e que, como já disse o rei, não há ilhas
desconhecidas, pois todas já foram mapeadas. Você acena feito louco,
tenta mostrar, conta como viu a ilha, mas não adianta. Só vê a ilha quem
quer ver a ilha e o impulso para que isso aconteça tem que ser muito
grande, porque, por ser desconhecida, essa ilha que somos nós é bastante
assustadora a princípio.
Poucos são os que sentem coragem em enfrentar o oceano sem o mapa,
sem a diretriz, sem o capitão direcionando, sem um rumo certo, tendo que
decidir metro a metro tudo o que vai acontecer e sem saber se está indo
na direção certa, porque, não há mapa. É um processo difícil, mas
necessário e sem volta. E depois se acostuma com essa liberdade de
decisão do rumo, que vem sempre associada à “náusea” – emprestando o
termo usado por Sartre – que é justamente a angústia de dirigir sozinho o
barco da nossa própria vida. A nossa ilha desconhecida, que somos nós.
http://genialmentelouco.com.br/2016/11/02/porque-e-mesmo-necessario-sair-da-iilha-para-ver-a-ilha/