Com o arco em suas mãos e a aljava cheia de flechas, o sábio enfrentará o perverso.
Pois sua boca não diz nada de verdadeiro.
Impelida por um coração trapaceiro, profere discursos dúbios.
(Pitacos)
Introdução
O Ocidente possui um rico legado de sabedoria filosófica e espiritual que nos tempos recentes se perdeu de maneira trágica. Fascinados com a luz do Oriente – que inegavelmente tem muito a nos ensinar – damos as costas às nossas próprias tradições, que nos falam em termos familiares e que está ao alcance de nossas mãos. Tal é o caso da sabedoria compilada pelos chamados “Sete Sábios”, que se ligam à área de Delfoss na Grécia, sob a patronagem do Apolo, o Deus Arqueiro. O objetivo deste artigo é mostrar como a sabedoria destes sábios, destiladas em máximas para a vida, podem se converter em conselhos para o praticante de Arco e Flecha visto como um exercício para a vida interior.
As origens da Filosofia
Por volta do século 6 AEC, surge na Grécia e em suas colônias (que iam desde a Ásia até o Sul da Itália), surge um movimento que, embora ainda influenciado pela visão mítica e religiosa, herdada de eras passadas, começa lentamente a se desvincular dessa visão e dar origem a uma outra ordem de questões e respostas para o mistério da existência. Os primeiros filósofos gregos interessam-se principalmente pela physis, a natureza, em um sentido amplo – que hoje em dia seria chamado de “astronômico”, “cosmológico” – mas também “cognitivo”, “epistemológico” e “ontológico”.
Uma das principais preocupações da escola que surgiu na região de Mileto, era a do princípio primeiro (arché) de todas as coisas: para Tales, era a água; para Anaximenes era o ar etc. É notável que mal surge, essa nova maneira de ver, ela se divide em diversas e variadas escolas. Assim, surge a escola dos Eleatas, que atribuíam ao Ser a característica da imutabilidade e da unidade – com a consequência de ver o mundo dos sentidos como uma espécie de ilusão. Essa é a origem dos famosos paradoxos de Zeno e que muito influenciaria Platão alguns séculos depois. Ao mesmo tempo, mas em sentido contrário, surgem os filósofos que apenas enxergam a mudança e o fluxo, tendo em Heráclito (“não entramos duas vezes no mesmo rio”), seu expoente maior. Surgem também os primeiros esboços das teorias atômicas (com Leucipo) e de teorias mais metafísicas, como a escola de Pitágoras e Empedocles, com seus preceitos sobre a metempsicose, vegetarianismo e ascetismo. Surge ainda, uma outra escola que irá lançar sua sombra pelos séculos a frente, com sua eterna batalha entre nomos (“a convenção social”) e a physis: os chamados sofistas (divisão essa que terá forte influência na escola dos Cínicos).
Nota-se, portanto, que a tradição filosófica grega já surge como uma força que irá mudar completamente o panorama do pensamento ocidental – seus principais frutos sendo a ciência, a busca intelectual livre da mitologia e a busca por uma harmonia entre a natureza e a conduta humana. Dentre as figuras intelectuais que se destacam nesta fase mas que, de maneira geral e estrita, não são considerados filósofos propriamente (são vistos mais como estadistas), destacam-se os chamados “Sete Sábios”. Em parte lendários, em parte inspirados em pessoas reais, sabe-se muito pouco sobre eles: até mesmo quais deveriam pertencer à lista dos “sete” (que, aliás, é um número associado a Apolo) é controvertida. Em geral, conduto, aceitam-se os seguintes: Cleobolos de Lindos, Solon de Atenas, Quilon de Esparta, Bias de Priene, Tales de Mileto, Pitaco de Mitilene e Periander de Corinto. A tradição atribuiu a eles certas máximas e orientações que por uma afinidade de valores, foi associada ao Templo de Delfos, santuário máximo de Apolo e famoso por seu oráculo. Vamos nos voltar agora para Apolo e a tradição de Delfos.
Apolo: símbolo e valores
Apolo já foi chamado de “o mais grego dos deuses”. Nele, encontram-se reunidos os principais valores da tradição grega: a ordem, a clareza, a natureza solar, a liberdade, a lonjura – a ausência do confuso, do caos, do intoxicante. As atividades que o tinham como patrono, deixam bem claro essa influência: a medicina, a música, o tiro com arco e flecha, o direito, a fundação de cidades. Ao mesmo tempo (e logo veremos porque) Apolo também era associado com as pragas, o vento, o lobo, o corvo e a profecia. Ou seja, o mesmo deus que representa a luz (tanto a física quanto a intelectual) também possuía seu lado obscuro e sombrio.
Logo na abertura da “Ilíada”, o clássico texto sobre a guerra de Tróia escrito no século 8 AEC, Apolo é retratado como um “deus terrível como a noite” que derrama a praga sobre o exército grego, por terem roubado a filha de seu sacerdote. Ao mesmo tempo, tão logo os gregos reparam seu erro, ele suspende a epidemia. Note-se o contraste com Poseidon, que irá perseguir com sede implacável de vingança, por anos a fio, outro herói grego: Odisseu. Apolo, em meio à trágica e sangrenta batalha, coloca-se ao lado dos troianos e em especial, ao lado de Heitor, o mais nobre dos combatentes. É Apolo que barra Pátroclo, vestido com a armadura de Aquiles, em seu orgulho e pretensão desmedidos, ao avançar contra os muros de Tróia (não estava destinado a ele conquista-la) e é o mesmo Apolo quem lembra aos deuses olímpicos que Aquiles, em sua fúria pela morte de Pátroclo, fustiga e maltrata o cadáver de Heitor além de toda medida humana e nobre.
Vemos assim, que já em suas primeiras manifestações literárias, Apolo surge como guardião do limite, da ordem, da nobreza e do comedimento – sua leveza e graça se opõem de maneira inequívoca contra o pesadume de Poseidon, enquanto força cega e destrutiva da natureza. Não deveria nos causar surpresa, portanto, que um deus que reúne ao redor de si, tais valores tenha exercido certa influência e inspiração nos filósofos que justamente se debruçavam sobre o estudo do cosmos (“belo” em grego). Começando por Pitágoras que, a propósito, cunhou a palavra “filósofo” (“amante da sabedoria”) até o sonho de Sócrates com o cisne (representando Platão), encontramos símbolos e referências a Apolo. Mesmo os poetas, como Píndaro, ilustravam em seus versos preceitos associados aos valores de Apolo – tais como a moderação e a prudência – e ainda mais, comparavam seus versos a flechas que ao levar o ouvinte a conhecer o justo, o belo, o bom, atingiam seus alvos. Note-se que para os gregos antigos uma pessoa não era justa: ela conhecia o justo. E esse “conhecer” é em tudo uma atividade apolínea.
No caso de Pitágoras, a associação com Apolo se torna ainda mais íntima, uma vez que ele era considerado a encarnação ou manifestação do próprio deus! Conta-se que um enviado da terra dos Hiperbóreos (provavelmente as planícies da Mongólia e Tibete) chamado Abaris atravessou o continente carregando uma flecha dourada e a entregou a Pitágoras como uma prova de que ele era, de fato, uma manifestação de Apolo. Em sua escola, Pitágoras utilizava a música para efeitos terapêuticos e a matemática e a geometria como ferramentas simbólicas e didáticas para uma educação ampla, uma verdadeira formação de caráter.
Heráclito, por sua vez, cita Apolo como o “senhor de Delfos” que “não revela nem esconde, mas indica por símbolos” os acontecimentos. Vale lembrar que as consultas em Delfos eram feitas a uma sacerdotisa (a chamada Pítia) e esta recebia de Apolo a resposta que seria traduzida em versos pelos sacerdotes. Essa maneira indireta dos oráculos pronunciados em Delfos é a razão pela qual Apolo era conhecido como “Loxias”, o “oblíquo”.
A descoberta recente de uma inscrição em uma estátua, na cidade italiana de Velia, antiga Elea, nos mostra que o filósofo Parmênides era um “iatromantis”, uma espécie de médico/profeta de Apolo. E vale a pena lembrar que Parmênides relata em seu poema como, em uma espécie de experiência visionária, visitou as filhas da Noite e lá, após cruzar os portões que separam a realidade dos vivos e dos mortos, lhe foi revelado como o “ser e o pensar são o mesmo”, dando origem à lógica e à concepção do Ser como indivisível, imortal, único.
Famosos também são os episódios onde certas pessoas especiais são apontadas pelo oráculo causando surpresa e espanto: foi o caso quando Sócrates foi apontado como o “mais sábio” dos atenienses. O tema de encontrar o “mais sábio” também é recorrente: conta-se que um trípode de ouro (roubado por Páris quando fugiu com Helena e posteriormente jogado ao mar) foi recolhido por pescadores e nele encontrou-se a inscrição “Ao mais sábio”. Este foi então enviado a Bias, um dos Sete Sábios, que o enviou a outro e assim sucessivamente até retornar a Bias que entendendo o simbolismo, entregou e consagrou o trípode a Apolo, no seu templo em Delfos.
Aqui vale a pena mencionar o conceito bastante particular que Pitágoras tinha do oráculo de Delfos, Apolo e a Unidade. Uma figura simbólica e matemática muito importante para os pitagóricos era a chamada “tetractys” – uma figura triangular composta de 10 pontos onde cada linha tem um significado próprio (note que o número 10 também se relaciona a Apolo Musagetes, isto é, enquanto líder e condutor das 9 Musas). O primeiro ponto/linha, representa a Unidade (Apolo), a segunda linha (composta de dois pontos), representa a Díade, a dualidade, o limite e o ilimitado. A terceira linha, composta de 3 pontos, representa a Harmonia e por fim, a última, composta de 4 pontos representa o Cosmos, isto é, a totalidade. Pitágoras costumava transmitir seus ensinamentos em frases criptográficas e uma delas, que nos interessa aqui, diz respeito ao oráculo de Delfos:
O que é o oráculo em Delfos?
A Tetractys, que é em si mesma a Harmonia das Sereias.
Essa resposta alude à famosa “harmonia das esferas”, relação matemática e musical que, de acordo com Pitágoras, mantinha e fazia girar os planetas e esferas estelares. Portando, a Unidade mantinha o Cosmos unido harmoniosamente e era capaz de se revelar aos homens através de uma relação apropriada com seu oráculo.
No “Hino Homérico”, Apolo diz de si mesmo: “Amarei a lira e o arco, e revelarei aos homens a vontade infalível de Zeus”. Acabamos de ver como Apolo, através da Pítia, revelava aos homens a “vontade de Zeus”. Resta entender sua relação com o arco e a lira. Vamos encontrar a resposta para isso em Heráclito, o filósofo que via o mundo como um fogo eterno e em constante fluxo. A principal característica de seu pensamento era justamente como as forças contrárias se unem para dar origem ao mundo tal qual o vemos. A aparente contradição das coisas era subjugada por uma harmonia oculta. E em Apolo, que para Pitágoras era a “unidade”, Heráclito enxergava a união harmoniosa de dois princípios, conforme reza um dos seus fragmentos: “Ignoram como o divergente consigo mesmo concorda: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”.
Em outras palavras, Apolo, aqui, representa o Ser em sua totalidade e harmonia, onde os opostos se encontram conjugados (voltaremos a esse tema mais vezes).
Podemos observar a mesma ideia através de alguns símbolos associados a Apolo. Vamos começar pelo próprio arco: as duas pontas, unidas por uma corda, revelam de maneira bastante gráfica a união dos opostos. Muitos veem nesta imagem um símbolo do axis mundi, o eixo metafísico e ontológico ao redor do qual todos os mundos e a essência de um ser, giram. É digno de nota o fato de existir em Delfos uma pedra conhecida como omphalos – ela seria um marco, estipulado por Zeus, do “centro do mundo”. Claro que se trata de um “centro” simbólico – metafísico, se quisermos. A flecha quando colocada no arco, traça o meio, dividindo o arco em duas metades iguais: outra imagem de “ir pelo meio”, evitando os extremos. Homero nos informa, ainda, que todo arqueiro talentoso deriva suas habilidades de Apolo. E enquanto guardião dos arqueiros, ele era conhecido por Aphetor (“o que dispara”), Argyrotoxus (“do arco prateado”) e Articenens (“o que carrega um arco”).
Quanto à lira, cuja melodia, conforme dito pelo próprio Apolo no “Hino Homérico a Hermes” trás aos homens três bênçãos: o sono, o amor e a alegria (já vimos como sua melodia é comparada ao disparo de uma flecha). Na Odisséia, o poeta compara o toque de Odisseu na corda de seu arco ao experiente tocador de lira – e o som produzido é semelhante. Vale notar que Odisseu realiza seu disparo magistral por entre 12 machados durante a festa de Apolo que ocorria ao final de um ciclo de 19 anos, coincidindo o solstício de inverno com a lua nova (note o simbolismo da lua e do sol, conjugados).
Outra maneira de ver isso é comparando os dois pássaros que lhe são associados: o cisne e o corvo. O branco e o negro. Apolo também era associado ao lobo e aos rebanhos, isto é, ao caçador e sua presa. É curioso que os jovens devotados a Apolo faziam parte de uma sociedade que era dedicada a Apolo Lykeios, isto é, “Lobo” (mas também “Branco”, no sentido de “luminoso”, “claro”). Estes jovensvagavam pelas fronteiras da cidade e daí pode ter surgido algumas das lendas a respeito de lobisomens (a associação de Apolo com a profecia reforça seus laços com práticas xamânicas, como a licantropia). Essa mesma posição, “às margens”, era assumida pelos jovens arqueiros que acompanhavam os exércitos gregos.
Se existe um conceito unificador para a ideia de Apolo ou seu principal valor, seria aquilo que os gregos chamavam de “sophrosyne”, um conceito que se remete a uma mente sã, autocontrole e temperança, guiados pelo conhecimento e equilíbrio (qualidades que, como sabem todos os arqueiros, são fundamentais para um bom disparo).
É, portanto, a partir deste universo de símbolos e valores que as máximas dos Setes Sábios acabaram sendo associadas ao Oráculo de Delfos.
Antes de analisarmos essas máximas e a maneira como se associam ao tiro com arco, convém notar que pouco importa como se encara aqui a “Apolo”: independentemente de qualquer opinião sobre sua realidade metafísica ou espiritual, o que nos interessa acima de tudo é Apolo enquanto símbolo ou centro de valores.
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As máximas dos Setes Sábios
Diz-se, com ambiguidade calculada, que as máximas coletadas dos Setes Sábios foram inspiradas por Apolo: seja como influência direta dele, seja como escritas sob seus valores. Isto é, estas máximas , representam o espírito de Apolo. Seja qual for o caso, novamente, pouca importância terá em nosso estudo. Vejamos sem qualquer pretensão à exaustão (contam-se mais de 140 máximas), ordem ou identificação, as principais máximas que chegaram a nós:
- Conhece a ti mesmo.
- Nada em excesso.
- A moderação é a melhor coisa.
- Não deseje o impossível.
- A maioria dos homens é má.
- Saiba quais oportunidades agarrar.
- Seja previdente em todas as coisas.
- A ignorância e a tagarelice é o que mais toma conta dos homens.
- Não acalente nem mesmo um pensamento.
- Não seja inconstante ou ingrato.
- Prefira ouvir a falar.
- Prefira aprender a não ter vontade de aprender.
- Procure a virtude e evite o vício.
- Seja superior ao prazer.
- Instrua suas crianças.
- Esteja pronto para reconciliar-se após disputas.
- Evite a injustiça.
- Não faça nada pela força.
- Não fale mal dos mortos.
- Honre a velhice.
- Prefira a punição ao ganho ilícito, pois o primeiro é doloroso apenas uma vez, mas o outro para
- vida toda.
- Não ria dos desafortunados.
- Caso seja forte, seja também misericordioso, assim seus vizinhos o respeitarão ao invés de
- temê-lo.
- Mantenha uma língua reverente.
- Contenha a ira.
- Não rejeite a divinação.
- Não tenha pressa em seu caminho.
- Obedeça às leis.
- Os ingênuos são facilmente enganados.
- É difícil suportar uma mudança para pior na sorte com magnanidade.
- Delibere antes de escolher um caminho, mas uma vez escolhido, vá até o fim.
- Não fale apressadamente, isso denota estupidez.
- Ame a prudência.
- Fale dos Deuses como realmente são.
- Não louve um homem indigno por conta de suas riquezas.
- Demonstre seu ponto pela persuasão e não pela força.
- Valorize a sabedoria como uma maneira de viajar da juventude à velhice, pois é mais duradoura
- que quaisquer bens.
- O que quer que faça, faça bem.
- Mesmo os Deuses não podem lutar contra a necessidade.
- O poder revela o homem.
- Não diga antecipadamente o que vai fazer, pois em caso de falhar, será motivo de riso.
- Não reprove um homem por seu infortúnio, pois a Nemesis pode tomar conta de você.
- Evite falar mal não apenas de seus amigos, mas também de seus inimigos.
- Cultive a verdade, a boa fé, a experiência, a inteligência, a sociabilidade e a diligência.
O Caminho do Arco
Mesmo numa leitura rápida e superficial, notamos que muitas dessas máximas se sobrepõem ou tratam de temas em comum: a moderação, por exemplo, ou o respeito aos limites. Vamos selecionar um pequeno grupo dessas máximas e tentar aplicá-las ao tiro com arco. Gostaria de frisar que essa interpretação não era usada (até onde eu saiba) pelos filósofos ou arqueiros antigos. Mas creio que essa minha interpretação está harmonizada com o mesmo espírito que lhes deu origem.
A ideia de tentar essa interpretação é oferecer aos praticantes modernos e ocidentais um arcabouço filosófico ou espiritual que seja rico o bastante para dar à sua prática outro viés. A exemplo do “Bushido” japonês (o código de honra seguido pelos samurais) não se trata aqui de “crer” em qualquer coisa ou doutrina mas antes o de se alinhar a um conjunto de práticas, posturas e atitudes. Em outras palavras, não se oferece uma “doutrina” nem mesmo uma visão “mítica ou mística” – apenas e tão somente uma visão poética e filosófica.
Assim, meu objetivo é oferecer uma visão que possa se fortalecer mutuamente: fruto de uma reflexão sobre princípios, símbolos e valores bem como na prática constante, disciplinada e consciente do tiro com arco. Fazendo isso, iremos por em prática uma verdadeira ascese, em seu sentido grego, que nada mais é que o exercitar-se, o treino sobre si mesmo.
Vejamos então como tornar essas máximas délficas em um Caminho.
Conhece a ti mesmo.
Sem dúvida a mais famosa de todas as máximas que chegou até nós. Hoje em dia temos a tendência a entendê-la num sentido bastante “psicológico”: uma permanente escavação arqueológica do nosso “eu”, do nosso “interior” – sempre em busca de algum assunto mal resolvido ou de supostos bloqueios escondidos. Os antigos não viam dessa maneira: para eles, a frase significava simplesmente: “saiba quem você é (você não é um deus) e reconheça seu lugar no esquema das coisas”. Para que um arqueiro faça disparos consistentes, ele também deve conhecer a si mesmo. Deve saber que não importa o tiro perfeito que acabou de dar, ele, em si mesmo, não é perfeito. Nem infalível. Ele deve conhecer seu corpo, suas capacidades, seus defeitos e limites. Igualmente, deve conhecer seu arco, suas flechas.
Essa é talvez a segunda mais famosa e importante das máximas dos Sete Sábios. Ela abarca várias outras máximas, atribuídas a diferentes sábios, e todas expressam a mesma ideia: a moderação é a melhor coisa que podemos ter. O respeito ao limite. É interessante que quando aplicada a si mesma, a própria moderação deverá ser tomada... moderadamente! Sendo assim, momentos de total entrega ou indulgência fazem parte de um equilíbrio e balanço aplicados à vida como um todo. Aqui também encontramos a imagem do “caminho do meio” (mais tarde louvado incessantemente por Aristóteles).
Durante os treinos, todos nós sentimos a tentação de “mais um tiro” – quando já estamos atirando há duas, três ou quatro horas seguidas. Nossa preparação não deve nunca ultrapassar os limites do nosso corpo, do nosso tempo para com outras pessoas e afazeres. Ao mesmo tempo, as desculpas que inventamos para não treinar, nos jogam no outro extremo: o da inatividade. Outra maneira de ver isso é sua própria maneira de segurar o arco: se muito firme, ao disparar a flecha, um pequeno e involuntário movimento poderá alterar seu curso. Se muito fraco, o arco irá balançar e tornar a mira errática.
Não deseje o impossível.
Ir além de suas próprias forças ou sucumbir a um excesso de orgulho por conquistas passadas, nos faz querer cruzar limites ou nos testarmos além de nossas forças. Os gregos tinham um nome para isso: hubris, o orgulho desmedido. Quando desejamos o impossível é então que estamos mais próximos da queda. Note que não se fala aqui em inatividade, em abrir mão de seus desejos ou ambições. Mas que se note o que é próprio e factível para sua vida, sua pessoa e suas condições. Se você é um arqueiro que acabou de começar, não é irreal que com o treino você passe a atirar melhor. Mas pode ser irreal querer se tornar um campeão olímpico ou mundial. Analise os fatos e condições ao seu redor. Seu equipamento, suas condições financeiras, suas possibilidades de treino.
Saiba quais oportunidades agarrar.
Entre os gregos, havia dois conceitos distintos do tempo: aquele que marcava o avanço do dia, chamado de chronos (de onde vem o nosso “cronometrar”) e que é uma simples sucessão de eventos sem nenhuma qualidade especial e outro, chamado khairós, que é “o momento certo”: aquela janela de oportunidade que se abre repentinamente. Nem todo momento é oportuno para todas as coisas. É preciso estar alerta, colocar-se no centro e manter-se atento, com a mente calma e serena para perceber o khairós. Todo arqueiro já sentiu, pelo menos uma vez, esse momento: quando tudo está certo, os movimentos fluem, os músculos encaixam e antes mesmo da flecha atingir o alvo sabe-se que acertamos o centro do alvo. Como fazer com esse momento perdure? Como trazê-lo para nós quando estamos atirando de maneira errática e relapsa? Talvez as respostas estejam nas máximas anteriores: conheça-se, não tente o impossível, não force os limites.
Seja previdente em todas as coisas / Ame a prudência.
O previdente é aquele que pode enxergar antecipadamente o resultado de uma ação e assim é capaz de tomar as atitudes adequadas. Podemos pensar na imagem de alguém posicionado no topo de uma montanha e que vê um exército se aproximando. Seja pensando no futuro ou de um ponto elevado, o previdente é alguém se coloca à distância e pode deliberar com calma. Um dos epítetos de Apolo era Hekaergos ou Hekēbolos, ambos significando, “o que atira de longe”: esta é, como se sabe, a postura de um arqueiro: que mira e atira de longe contra seu alvo. O arqueiro é previdente também num sentido bem prático: ele se exercita em mentalmente ver sua flecha atingindo o alvo. Em sua mente, ele repassa todos os movimentos necessários para armar o arco, encaixar a flecha, assumir sua postura e então atirar. A visualização é uma das técnicas mais poderosas que um arqueiro tem em seu treino. Ou sua vida.
Não acalente nem mesmo um pensamento.
Essa é uma frase um tanto quanto difícil de entender. Talvez seu sentido seja a de que em um mundo em constante fluxo, onde todas as coisas mudam e passam, agarrar-se até mesmo a um pensamento é algo imprudente. No contexto do treino com o arco o pensar demais na hora do tiro é bastante prejudicial. Se por um lado visualizamos nosso tiro de maneira clara e detalhada, por outro, durante o preparo para o tiro pensar em muitos detalhes pode nos paralisar ou tirar a naturalidade instintiva que tora o tiro harmonioso.
Para isso, uma técnica simples é recomendada: repita uma frase o tempo todo. Sim, a mesma ideia por trás de um mantra. Essa frase irá distrair sua mente consciente e deixará com que a técnica que você tanto lutou para absorver aconteça de maneira natural.
Não seja inconstante ou ingrato.
Todos nós temos uma dívida de gratidão para com todos aqueles que vieram antes de nós e nos passaram seus conhecimentos, experiências e descobertas. Na próxima vez que empunhar seu arco, lembre-se que você segura em sua mão a história de uma arma que se estende por 35 mil anos no passado. Uma arma, uma ferramenta, que sustentou a espécie humana: que nos deu alimentos e segurança. Seja grato a todos esses arqueiros que viveram antes de você. Lembre-se também de seus instrutores e técnicos. Daqueles que trouxeram a prática do arco para lugares onde antes não havia. A gratidão perante as pessoas e a vida é a marca de alguém que encontrou seu equilíbrio, sua serenidade, seu caminho do meio. A constância de caráter, de propósito, de atitudes é não apenas um meio para nos tornarmos pessoas melhores mas também um fim em si mesmo. A constância também é uma meta em nossa prática. Na verdade, esse é simples mas difícil segredo do tiro com arco: repetir, com precisão milimétrica, a cada tiro, toda a sequência de passos e pontos que são necessários para disparar a flecha. Dê um único tiro perfeito – depois repita mil vezes. E lembre-se se ser grato a você mesmo também por cada tiro perfeito. Afinal, você também faz parte dessa longa e ininterrupta linha de arqueiros. Tenha reverência por essa tradição!
Prefira ouvir a falar / Mantenha uma língua reverente / Evite falar mal não apenas de seus amigos, mas também de seus inimigos.
O silêncio sempre foi valorizado por todas as escolas filosóficas (na Grécia e fora dela). Pitágoras impunha a seus novos alunos alguns anos de silêncio para que se criasse a atitude apropriada para receber os ensinamentos mais elevados. Não é preciso mencionar o alto grau de disciplina que isso exige. O silêncio parece, de fato, nos tornar receptivos a detalhes mais sutis e nos permite saborear melhor aquilo que nos foi passado. A concentração, a contemplação e a meditação só podem ocorrer num ambiente envolvido pelo silêncio. Infelizmente, não é isso que encontramos em muitos stands
(contraste-se com o caráter quase sagrado que encontramos nos dojos onde se treina o Kyudo, a modalidade japonesa do tiro com arco). Muitas vezes, quando estamos irritados por uma série (ou round) ruim, o ideal é pararmos de atirar, nos afastarmos, mantermos alguns momentos de silêncio e isolamento. O excesso de pensamentos, de análise ou de ficar conversando incessantemente sobre os tiros ou o processo de atirar, pode causar mais dano do que benefícios. Ouvir, num sentindo amplo e profundo, é realmente uma (difícil) arte. Estar aberto ao que o outro, a vida, o mundo tem a dizer – sem interrompê-los com nossas opiniões (doxa) – é um exercício (askesis) constante. Em muitas tradições espirituais, os ensinamentos mais profundos e elevados nunca são postos por escrito – mas sempre passados oralmente de mestre a discípulo. Muitos dos filósofos que aqui falamos, aqueles que realmente fundaram escolas que mudaram o curso da história (por
exemplo Sócrates ou Pitágoras) não deixaram nada escrito. Eles ensinavam pelo exemplo e pelas ações. A seus discípulos cabia “ouvir” essa melodia sutil. Igualmente, no tiro com arco, é possível aprender muito com livros e artigos – mas somente a relação com o treinador, ouvindo suas orientações e conselhos, é que irá proporcionar ao praticante o verdadeiro avanço. Ouvir longe de ser algo passivo é uma atividade no qual nos engajamos. Ouvir é uma ação que quando executada propriamente nos muda e transforma. E quanto mais nos dispomos a ouvir, mas tempo nos sobra para a reflexão, para ponderar e chegar ao fundo das questões e situações que encontramos. Com isso, perdemos também o hábito de falar precipitadamente sobre tudo e todos. E, o que é ainda pior, falar mal de tudo e todos. É relativamente fácil (embora o façamos com bastante frequência) evitar falar mal de nossos amigos. Mas uma alma nobre se revela por também não falar mal de seus inimigos. É preciso lembrar que também pode-se ter inimigos nobres, em cuja oposição reside uma chance de crescimento e melhoria. A competição (agon) como vimos deve ser tratada de maneira impessoal. Temos inimigos por algumas
horas durante uma competição, mas que podem ser amigos para toda uma vida. Falar mal deles, sob quaisquer circunstância, não revela a pequenez deles – mas a nossa. Também é uma questão de prudência evitarmos falar muito e antecipadamente de nossos planos. Há fatores demais que estão fora de nosso controle. É preferível executar nossos planos em silêncio. Dividir os frutos quando a jornada está encerrada. Ou a flecha disparada.
Procure a virtude e evite o vício / Evite a injustiça.
A palavra que em grego é traduzida por “virtude” é arete. Esta expressão originalmente e, de maneira especial em Homero, indica antes valor e habilidade militar. Com o tempo, ela foi gradualmente recebendo o sentido moral que o nosso termo “virtude” abrange. Mas, mesmo assim, a palavra “virtude” tem sua origem no latim, virtus, que indica mais uma vez, “força” ou “virilidade”. Arete também pode ser traduzida como “excelência” e nesse sentido diz que cada coisa ou ser vivo tem sua arete própria: assim, um cavalo tem uma arete própria (a velocidade, por exemplo) que será diferente daquela do leão (a força). Os filósofos também adaptaram esse sentido para os seres humanos e, em geral, atribuíam como a arete de um ser humano uma série de virtudes: desde a sociabilidade até diversos tipos de sabedoria (métis, pronesis, sophrosyne). No que diz respeito ao tiro com arco, a transposição é tanto óbvia quanto rica: um arqueiro deve procurar sua arete, aquela que é típica e própria do tiro com arco. Não esqueça nunca que o arco é uma arma, com uma longa história de batalhas, guerras e conflitos. Também foi (ainda é) usado para a caça durante milênios. Existe uma tradição guerreira e heroica que se liga ao arco – e neste sentido ele mantém todo o sentido original de arete. Mas, claro, ele pode nos inspirar a muito mais que isso. Pode nos instilar o conhecimento do justo, do bom e do belo – refletindo sobre seus princípios, seu desenho e projeto, podemos entender arete enquanto virtude, enquanto moderação, enquanto união de opostos, enquanto caminho do meio (como a flecha quando posta no arco). Cada tiro, então, aperfeiçoa nossa
virtude: moral, física, estética, guerreira. Dois epítetos de Apolo se aplicam a este conceito: O primeiro, Alexikakos, significa “o que afasta o mal” e o segundo, Apotropaios, “o que repele”.
Seja superior ao prazer / Prefira aprender a não ter vontade de aprender.
Conta-se uma história onde Hércules, que era também um arqueiro, encontra numa bifurcação (Y) duas ninfas, Prazer e Virtude, que lhe ofereceram uma escolha: na primeira oferta, uma vida fácil e prazerosa ou, no caso da segunda, uma vida difícil mas que lhe traria glória ao final. Ele escolheu a segunda, tornando-se posteriormente o primeiro humano a ser levado aos céus olímpicos (apoteose). O “prazer” aqui não deve ser entendido como desfrutar das boas coisas da vida (Hércules também era famoso por seus apetites homéricos) mas, antes, o não ser subjugados por eles. O ser inativo. O não
aperfeiçoar-se ou trabalhar sobre si mesmo. Em nosso treino, é comum chegarmos a um ponto onde estamos confortáveis com nossos resultados, com a distância que atiramos e que já não apresenta mais desafios. É justamente nessa hora, que devemos escolher o caminho mais difícil, o mais severo e desafiador. Talvez seja o caso de mudar de arco, de mudar o estilo de tiro (arriscar começar de novo com o arco nudo, por exemplo). Ser superior ao prazer não é abandonar a vida. É não deixar de lutar. Não muito diferente de Hércules, nós também podemos combater certos monstros e injustiças.
Começando por nós mesmos. E para isso, é preciso estarmos dispostos não só a escolher mas também escolhermos aprender sempre mais. Não considerar nenhum ponto como “bom o bastante”. Um gráfico conhecido entre os técnicos de tiro com arco é o “S”: significando que o começo do aprendizado é rápido e muito prazeroso, onde o aluno rapidamente domina uma técnica (digamos, de ancoragem) e logo vê os resultados em grupos consistentes de flechas. Mas, depois de um tempo, demanda-se muito esforço para conseguir um leve avanço na contagem de pontos. Aqui, a tentação do “prazer” e de se
contentar com o estágio atingido e não mais aprender é muito grande. É hora de repetir a escolha de Hércules.
Esteja pronto para reconciliar-se após disputas / Contenha a ira.
Os gregos amavam uma disputa. Seja na arena esportiva ou na praça (ágora), os gregos sentiam grande satisfação em competir (agon). Hoje em dia, não é diferente em muitos stands de tiro com arco: mal se aprende a atirar, logo se está sendo convidado a participar de campeonatos (muitas vezes, dentro do próprio stand). Pode-se, é claro, usar isso como um treino mais profundo do que apenas marcar pontos: a concentração, a tranquilidade, a serenidade e etc podem ser aprimoradas sob a pressão que é um campeonato. Afinal, de todos os esportes, o arco é um dos que mais depende da mente do atleta. É nessa hora, também, onde estamos mais propensos a criar inimizades com o arqueiro ao lado que atirou melhor que você. A disputa deve ser encarada de maneira impessoal. Portanto, seja quais forem nossos sentimentos durante a disputa, logo após seu término devemos estar dispostos a começar de novo, a deixar que o passado se vá e acabe. Em uma competição, só podemos controlar um único tiro: aquele que damos neste exato momento. Os que já se foram, não podemos alterar. Os que ainda daremos, ainda não chegaram. Não vale o mesmo para todas as outras circunstâncias da nossa vida? Também é importante chamarmos a atenção para o nosso pior e mais constante inimigo: nós mesmos. Por mais que se dispute com outros arqueiros numa competição, no fundo, é a nós mesmos que devemos superar e vencer. E é em geral contra nós mesmos que lançamos toda nossa ira quando perdemos, quando após semanas de preparo, desperdiçamos tiros importantes. A ira nos cega e rouba de nós aquele equilíbrio que tanto buscamos. Com ela, somos incapazes de trilhar o caminho do meio. Ela é um estado de excesso. Fisiologicamente, a ira acelera nossa respiração e batimentos cardíacos, tornando nosso tiro mais errático e difícil de controlar. É preciso estar disposto a sempre se reconciliar consigo mesmo. Não apenas após o término de uma competição mas após cada tiro. Após cada falha (hamartia). Contra o alvo ou contra a vida.
Não faça nada pela força / Demonstre seu ponto pela persuasão e não pela força / Caso seja forte, seja também misericordioso, assim seus vizinhos o respeitarão ao invés de temê-lo / O poder revela o homem.
Um erro comum de todo novato com o arco é acreditar que para puxar e armar o arco deve-se usar a força dos braços. Nada poderia estar mais longe da verdade: um tiro bem executado é notório por sua beleza, graça, fluidez de movimentos e aparente leveza e facilidade. Para os gregos, o conceito de “bom” e “belo” (agathon e kalos, respectivamente) eram em geral confundidos e tidos como basicamente a mesma coisa. Assim, um tiro que seja tecnicamente “bom” deverá ser necessariamente “belo” – e vice-versa. Para um tiro consistente, estável e preciso, usamos não a força dos braços (que se cansariam rapidamente do esforço repetitivo de armar o arco) mas sim os poderosos grupos musculares das costas. Usa-se aqui muito mais a técnica (techné) do que a força. Com esta máxima anuncia-se um dos grandes princípios da ética grega e que mais tarde seria adotada pelos movimentos humanistas: a força bruta como último recurso. Usar a negociação, a conversa, razão (conceitos, estes, abarcados pela palavra grega “logos”) como o caminho típico e preferível aos seres racionais, civilizados que somos. Ou deveríamos ser. Empunhar o arco, uma poderosa arma, deveria ser uma lição nesse sentido: apesar de sua potência destrutiva, ele pode se tornar um símbolo do logos que atravessa a barreira da ignorância e atinge o centro do alvo, aquele ponto claro, distinto e brilhante que todos carregam em si mesmos. O autocontrole também se revela aqui por um outro viés: caso tenha muito poder ou força em suas mãos, recuse-se a usá-lo para fins egoístas ou mesquinhos. Revele sua força interior demonstrando clemência, misericórdia. Que sua demonstração de força seja de outra espécie: a de uma alma nobre
que conquistou a si mesmo; que não teme dar, pois seus dons e caráter fluem com abundância. O objetivo não é ser temido, mas respeitado. Se você é um arqueiro excelente, seja também o mais generoso com seu tempo, com sua solicitude para com aqueles que aprendem, para aqueles que olham
para você e o seguem como modelo.
Não ria dos desafortunados / Não reprove um homem por seu infortúnio, pois a Nemesis pode tomar conta de você / É difícil suportar uma mudança para pior na sorte com magnanidade.
Se existe algo que a vida nos ensina constantemente é que nossa fortuna é instável. Se numa hora estamos em uma fase de extrema sorte, onde tudo parece dar certo ou simplesmente entrar em nosso caminho, imediatamente, sem qualquer aviso, nos achamos no extremo oposto (daí a importância de sempre trilharmos e escolhermos o caminho do meio, de evitar os extremos ou de procurar por eles). O mesmo, é claro, vale para nosso nível durante os treinos. Almejamos constantemente a consistência nos tiros, na pontuação e nos movimentos. Mas muitas vezes basta um tiro errado para que todo o
nosso histórico de bons tiros desabe e nos peguemos num longo caminho de volta ao nosso ponto ótimo. Suportar isso de maneira leve e generosa (para com nós mesmos) não é fácil. É, de certa maneira, nossa luta mais difícil, intensa e longa. Motivo pelo qual não devemos rir ou zombar daqueles que se encontram nessa fase – e a tentação é grande! Um comentário irônico sobre um tiro errado, a postura ou até mesmo o equipamento de outro arqueiro pode arruinar um bom dia de treino. Tanto quanto tentavam evitar a hubris, os gregos temiam a nemesis: a vingança dos deuses contra os soberbos. Seria algo como uma “justiça kármica”. Heráclito costumava dizer que: “O sol não excederá as medidas; se o fizer, as Erínias, servas da justiça, hão de o encontrar.” Isto é, tudo aquilo que rompe o equilíbrio natural será punido e trazido de volta à sua harmonia e lugares originais. Insultar aqueles que lutam contra um infortúnio é, sem dúvida, uma forma de atrair para si algum tipo de nemesis. Não precisamos nem acreditar em “agentes do destino” ou “punição divina”. Trata-se de um fato da vida que mais tarde ou mais cedo nos alcançará. Ou, em outras circunstâncias, isso acabará gerando algum desequilíbrio interno, psicológico em nós que cobrará também o seu preço. O poder, como já vimos em outra máxima, não é apenas uma questão de força – mas principalmente de nobreza, de sermos melhores quando temos a chance de sermos piores.
Não tenha pressa em seu caminho / Delibere antes de escolher um caminho, mas uma vez escolhido, vá até o fim.
De uma certa maneira, todos nós procuramos um caminho. E sempre houve, em toda a história humana, diversos caminhos a serem escolhidos. Obviamente, cada temperamento e cada necessidade individual, fará com que essas escolhas sejam sempre únicas e pessoais. Analisar, ponderar, se informar sobre cada caminho é algo essencial e prudente. Uma vez escolhido um caminho, porém, se quisermos colher seus frutos integralmente, é necessário que o sigamos até o fim. Saltar de um caminho para outro, ser inconstante, é uma perda de tempo e, pior, em alguns casos, pode nos dar a falsa sensação de sermos “experientes” ou “sábios”. Depois disso, o verdadeiro trabalho começa: trilhar pacientemente esse caminho. Não querer colher os frutos antes do tempo. Certas jornadas não são medidas por passos, mas por tempos específicos (khairós) e marcos especiais. É preciso ouvir quem já trilhou esse caminho. Existe no arco, a mesma tentação: a de ficarmos trocando de equipamento, de modelo, de estilo de tiro – tudo isso em busca de maior pontuação. Esquecemos o básico. O trabalho de aprimorar a postura que deve ser feito desde o começo (é muito mais difícil corrigir um erro de postura após anos de tiro do que no começo). Cada caminho – assim como cada estilo de arco – tem suas próprias metas, critérios de sucesso e o ganhos particulares. Aqui, o segredo é a reflexão unida à prática constante e ininterrupta.
Obedeça às leis.
Já vimos que algumas escolas faziam uma oposição entre as convenções sociais (nomos) e as disposições naturais. Muitos acreditavam que essa era a fonte da infelicidade e a razão por trás de uma vida infeliz. Ao mesmo tempo, foram os filósofos gregos que primeiro observaram certas regularidades na natureza que acabariam gerando o nosso conceito moderno de “leis naturais”. O arco é em sua essência uma encarnação viva de diversos princípios da Física (em grego, physis, de onde vem nossa “Física” denota uma idéia mais orgânica, de algo que se conduz e gera a si próprio). Ao estendermos e dobrarmos o arco, estamos armazenando energia potencial que será transferida para a flecha, tornando-se energia cinética (entre outras). A própria forma do arco, depende de certas leis geométricas. Não é qualquer padrão ou curvatura que são adequados. A flecha também está sujeita a certas leis aerodinâmicas que determinam sua velocidade ou estabilidade. Portanto, para atirarmos, temos que obedecer a certas leis. Num sentido mais amplo, e dentro do espírito délfico e apolíneo, a “lei” tem o sentido de “limite”, de disposição racional (logos) – não tanto como algo imposto, um dogma ou um mandamento, mas um comportamento apropriado – criado por seres racionais e livres, fruto de reflexão ponderada – e não imposta de fora por algum deus ou princípio de autoridade. Heráclito dizia: “Os homens devem lutar por suas leis como pelas muralhas de sua cidade”. É nesse espírito, enquanto fundador e protetor das leis cívicas, que Apolo era chamado de Archegetes (“fundador”) e Agyieus (“protetor de ruas e casas”). O desregrado, o sem-lei, o descontrolado, sem medida era para a visão grega, algo feio, algo ruim. De novo, o conceito de “nada em excesso” aparece: a lei é a escolha do caminho do meio, o evitar os pontos extremos de qualquer situação. A lei, em sua função primordial, é justamente traçar esse limite.
O que quer que faça, faça bem.
A escola Estóica (que surgiria apenas séculos depois, durante o período Helenista), usava a imagem de um arqueiro para ilustrar o conceito de dedicar-se integralmente a um ato e fazer aquilo que precisava ser feito. Cabe a um arqueiro preparar-se da melhor maneira possível – seu equipamento, postura, prática. Contudo, no momento em que ele solta a flecha, não há mais nada a se fazer. A virtude neste caso está toda contida em fazer aquilo que deve ser feito da melhor maneira possível – sem se preocupar com os resultados (seja o sucesso ou o fracasso). Tornar-se sereno ao ponto de encara com igual estado de espírito qualquer resultado denota, sem dúvida, um profundo autoconhecimento e equilíbrio. A nós, seres racionais, cabe fazer aquilo que é próprio de nossa natureza (nossa Arete particular). De nada nos adianta cumprir o dever atribuído a outra pessoa ou outro ser. Não podemos nos medir em força com um leão (desejar isso seria, em conformidade com outra máxima, desejar o impossível). Devemos nos conhecer o suficiente para saber o que podemos fazer, se temos a força necessária. Se, em outras palavras, está em nossa virtude fazê-lo. E, se estiver, fazer da melhor maneira
possível. Faça com que cada tiro seja seu melhor.
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Epsilon: letra que pendia sob a entrada do templo de Apolo, em Delfos. |
Sobre o “E” em DelfosO filósofo e sacerdote do Templo de Apolo, Plutarco, narra no tratado de mesmo nome, que logo na entrada do Templo de Apolo em Delfos, havia uma letra “E” (épsilon) dourada. Os personagens do diálogo discutem o possível significado dessa misteriosa letra. Por fim, concluem que essa letra nada mais é que a resposta apropriada à saudação de Apolo dirigida ao visitante.
Entre os gregos, a expressão mais utilizada para este fim é “khairé”, que significa “alegre-se” – mas também tem outras conotações como a “graça” (lembre-se das três Khárites, que acompanhavam Afrodite), “beleza” e tudo que é belo e agradável. Apolo, porém, dirige-se a seus visitantes com o sóbrio e desafiante “Conhece a ti mesmo” (gnothi seauton) gravado em uma das colunas do Templo. Em resposta, Plutarco concluí, devemos dizer “EI”, representado pela letra épsilon. Essa interjeição significa “Vós sois” e é a única maneira apropriada de se dirigir a Apolo, ou seja, respeitando seu maior e principal atributo: o Ser. Uma vez que o mundo material é um fluxo constante (como Heráclito e outros apontaram) encontramos na Divindade, o absoluto, o imutável, o eterno. De fato, prossegue Plutarco, Apolo se caracteriza pela Unidade, isto é, ele é o “Não-Muitos”: A (partícula negativa em grego) – Pollon (“muitos”). Uma outra evidência da unidade (“união harmoniosa dos contrários”) em Apolo é evidenciada pela etimologia de uma antiga palavra para “arqueiro” Ihtox e sua semelhança com “um” iox = eix.
Parece, então, haver uma contradição entre a frase “Conhece a ti mesmo” e o “Vós sois” – de um lado a ignorância mortal e de outro, a sapiência divina. Porém, Plutarco mesmo esclarece que “a letra e é um apelo, um chamado erguido em admiração e louvor ao Deus, existindo por toda a eternidade” e dentro do espírito que temos estudado até então, conclui: “a frase é uma lembrete ao homem mortal de sua própria natureza e fragilidade”. Só Deus é. Nós, nos tornamos. Uma maneira de visualizar essa relação é a imaginarmos que Apolo, a Divindade, é o Alvo Supremo – imóvel, imutável, centrado – enquanto nós somos a flecha que, em movimento, se dirige ao alvo. Não há, é claro, nenhuma obrigação de pensarmos em Deus como existindo “lá fora”. Essa viagem da flecha ao Alvo pode ser feita interiormente. Somos assim, os arqueiros, a flecha e o alvo. Conhecermos a nós mesmos é conhecer Apolo, a Unidade Divina, o centro luminoso em nós mesmos.
Conclusão
Em sua obra, “Poética”, Aristóteles analisa o que, numa tragédia, constitui aquele momento onde a vida do herói sofre uma súbita reviravolta e ele se vê obrigado a enfrentar seu (fatal) destino. Esse momento em geral é precedido por um excesso de orgulho (hubris) e o termo que Aristóteles escolhe para caracterizá-lo é hamartia: uma expressão derivada do tiro com arco e significa muito simplesmente “errar o alvo”. Com essa escolha Aristóteles torna evidente uma metáfora entre a sabedoria necessária para uma boa vida e a semelhança com um disparo perfeito, que de maneira reta e determinada, atinge seu alvo. Esse também foi o principal mote e objetivo deste artigo: mostrar como através de uma reflexão constante sobre máximas inspiradas pelo espírito de Apolo, o deus patrono dos arqueiros e o treino (askesis) do tiro com arco, que mutuamente se reforçam, iluminam e esclarecem, podemos atingir também o alvo supremo de uma vida bem vivida. Como vimos, é através da virtude da sophrosyne (temperança, moderação, autoconhecimento), a virtude que em Apolo tem sua representação máxima, é que podemos transformar a prática (techné) do tiro com arco em um Caminho do Arco.
O arco da sabedoria que não é usado quebra facilmente (Teofrastos).
https://caminho-do-arqueiro.blogspot.com/2013/09/os-preceitos-delficos-e-o-caminho-do.html