O DEUS DE SPINOZA




 

Einstein, quando peguntado se acreditava em Deus, respondeu

- " Acredito no Deus de Spinoza que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa em premiar ou castigar os homens".
O DEUS DE SPINOZA
Estas palavras são de Baruch Spinoza, filósofo holandês que viveu em pleno sèc. XVII. Este texto foi chamado de "Deus segundo Spinoza" ou "Deus Falando com você".
"Para de ficar rezando e batendo no peito. O que eu quero que faças é que saias pelo mundo, desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti.
Para de ir a estes templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa. Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nas praias. Aí é onde eu vivo e expresso o meu amor por ti.
Para de me culpar pela tua vida miserável; eu nunca te disse que eras um pecador.
Para de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar dos teus amigos, nos olhos de teu filhinho... não me encontrarás em nenhum livro...
Para de tanto ter medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem me incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor.
Para de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Se Eu te fiz... Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. Como posso te castigar por seres como és, se sou Eu quem te fez?
Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos os meus filhos que não se comportam bem pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso?
Esquece qualquer tipo de mandamento, são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti. Respeita o teu próximo e não faças aos outros o que não queiras para ti. A única coisa que te peço é que prestes atenção à tua vida; que teu estado de alerta seja o teu guia. Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.
Para de crer em mim . . . crer é supor, imaginar. Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho de
mar.
Para de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que Eu seja? Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, da tua saúde, das tuas relações, do mundo. Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar.
Para de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim. Não me procures fora! Não me acharás.
Procura-me dentro... aí é que estou, dentro de ti.".

 

O Simbolismo do Arco

O Simbolismo do Arco - Marcos Rogério Estevam (Junho / 2009)
 
Neste artigo pretendemos dar aos nossos leitores uma visão do simbolismo do arco tal como é visto pelas sociedades e textos Tradicionais. Não nos será possível fazer o estudo exaustivo e completo do tema (apenas a literatura indiana ocuparia centenas de páginas) mas esperamos fornecer textos e citações significativas que possam dar aos nossos leitores as chaves e direcções que permitam aprofundar os seus estudos e acertar no "alvo" supremo: o Espírito. 


O nosso estudo será dividido e começa por uma breve introdução histórica que mostra a antiguidade e o uso contínuo do arco até à invenção e disseminação das armas de fogo. A seguir trataremos de diversas interpretações simbólicas -- tais interpretações serão dadas de forma mais genérica e abstracta. A seguir faremos a incursão pelas sociedades Tradicionais para mostrar de maneira mais concreta como as interpretações da secção anterior
foram particularizadas nalgumas civilizações históricas. Finalmente, concluiremos com outro estudo simbólico que mostra o papel assumido metafisicamente pela figura do arqueiro.

  Breve história do Arco

O arco é das mais antigas armas  desenvolvidas pela humanidade. Encontramos pinturas e representações de caça e guerra que datam de há aproximadamente 35 mil anos, onde o arco já aparece proeminentemente. As flechas mais antigas que sobreviveram até aos nossos dias datam aproximadamente de há 9 mil anos e foram encontrados na Alemanha. Já o modelo de arco mais antigo conhecido foi encontrado num pântano da Dinamarca. É significativo também que o arco apareça praticamente em todas as civilizações e continentes com excepção do continente australiano. As maiores civilizações da história fizeram uso contínuo e frequente do arco como arma de guerra ou caça: egípcios, persas, partios, assírios, mesopotâmicos, babilónicos, hindus, coreanos, chineses e japoneses. 



Na Europa o arco teve grande proeminência entre os anos de 1066 e 1640 e, literalmente , mudou o mapa do continente. Igualmente significativa foi a influência do arco no subcontinente indiano e no grande império Mongol controlado por Genghis Khan. Após o século XVII o arco foi abandonado como arma de guerra, sendo utilizado para a caça recreativa ou desporto. De igual modo no Japão, aproximadamente na mesma época, o arco , que antes era empunhado orgulhosamente pelos samurais, tornou-se obsoleto na guerra graças à introdução de armas de fogo pelos europeus. E tanto na Inglaterra quanto no Japão, surgiram escolas ou sociedades de arqueiros que procuraram manter activas as antigas tradições. No Japão, isso ocorreu com a mudança da prática do kyujutsu ("técnica do arco") para o kyudo (o "Caminho do Arco") e foi essa modalidade que se tornou extremamente conhecida no mundo moderno com a publicação do livro "A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen" pelo filósofo alemão Eugen Herrigel. Já as sociedades europeias (sendo as mais famosas a Fraternidade de São Jorge e a Fraternidade dos Cavaleiros do Príncipe Artur) mantiveram em paralelo à prática do tiro a interpretação religiosa e ética (ainda que não iniciática) que era exigida aos seus membros (como seria de esperar, embora estas sociedades existam até hoje, o lado ético-religioso foi totalmente ignorado e, não obstante algumas "tradições" terem sido mantidas, possuem apenas carácter "social". Igualmente as escolas de kyudo foram-se aos poucos desviando da sua intenção original de serem "caminho marcial" (budo) e tornaram-se "clubes de arquearia", interessados apenas no aspecto exterior e competitivo do desporto).

  
Interpretações simbólicas
 
No mundo Tradicional cada objecto ou aspecto da vida é visto como reflexo de realidades superiores. O sagrado não é uma dimensão à parte da vida ou das actividades gerais. Ao contrário, é o grande ponto de referência que torna toda e qualquer actividade um "meio" ou "caminho" para a realização que transcende as limitações deste plano. No que diz respeito à interpretação simbólica do arco não é diferente.

A primeira interpretação simbólica que podemos atribuir ao arco, relaciona -se com o seu papel de "intermediário" entre o mundo superior ("Céu") e o inferior ("Terra"): as duas pontas ou extremidades do arco indicam, quando pronto para disparar a flecha, naturalmente e simbolicamente para estes mundos. Entre as duas extremidades, está a corda que as une e aproxima. Vemos aqui o equivalente da "Corrente Dourada" que une o "Céu e a Terra" apresentada na Ilíada, VIII.18. Ou seja, trata-se do simbolismo do Axis Mundi, o eixo do mundo, ao redor do qual revolvem todas as esferas planetárias e simbólicas. A mesma imagem aparece na narrativa bíblica da "Escada de Jacó" (Genesis 28:12, 13) e nas escrituras hindus, onde Agni Anikavat é chamado "filho do Céu e da Terra" -- Agni é visto como  a personificação do Fogo Sagrado utilizado nos ritos e "anika" significa a ponta da flecha. Na tradição nórdica, o eixo do mundo é chamado de Yggdrasil e ao seu redor estão os Nove Mundos. Yggdrasil é vista como gigantesca árvore e é por muitos interpretada como sendo um freixo, que é tradicionalmente considerada a melhor madeira para a fabricação de arcos.


Se colocarmos a ideia dos mundos superiores e inferiores não no eixo (verticalmente) mas como planos concêntricos (horizontalmente) teremos a imagem clássica do alvo. Ao centro (para continuarmos com a tradição Nórdica) teríamos a morada dos deuses, chamada de "Asgard" e progressivamente os demais mundos tais como Midgard (o plano material) até aos mais "externos" (ou seja, mais afastados do princípio central e espiritual) tais como Muspellheim (o reino das forças elementares, associadas ao fogo destrutivo). Assim representados, os mundos e o alvo formam a tradicional figura do "mandala" oriental.


Outra interpretação na mesma esfera de pensamento, é tomar o centro do alvo como o Sol e os demais círculos como as esferas planetárias da Tradição. O Sol, visto simbolicamente, representa o Espírito, as virtudes clássicas e heróicas e é, portanto, o "alvo" ou "objectivo" de todo aquele que trilha a senda espiritual. É também a representação bastante evidente do "centro" ou "núcleo" interior da pessoa. Na língua inglesa, o centro do alvo é chamado muito apropriadamente de "gold" (ouro, símbolo da luz e da imortalidade) e nos
alvos tradicionais o centro é geralmente de cor amarela (o próprio termo "alvo", ou "blanco" na língua espanhola, aponta para a cor "branca" do puro espírito ou da qualidade transcendente do Absoluto). Outra analogia pertinente dentro desse contexto é a dos raios do Sol como flechas disparadas em direcção à Terra. No mundo grego-romano, Apolo visto como Deus-Sol conferia doce morte aos seus eleitos através das suas flechas.


Por outro lado, também podemos interpretar o disparo da flecha em direcção ao alvo e ao seu centro como outra imagem do axis mundi (mas simbolicamente rebatido a 90º). Se  o visualizarmos desta maneira podemos dizer que o objectivo do arqueiro não é apenas "alcançar o centro" seguindo o caminho da "corrente dourada", mas também ir além das formas condicionadas ao trespassar o alvo. Ou seja, livrar-se das imagens e símbolos e entrar no reino que está para além da existência e da não-existência, o Absoluto Incondicionado (veja-se o conceito platónico do "Céu Trans-urânico", Fedro 247 C).


A flecha também possui o significado simbólico da "palavra alada" que atinge seu alvo certeira (veja-se as "Odes" de Píndaro). O recto entendimento era visto entre os gregos como o disparo perfeito. Também vemos esta imagem no Atharva Veda Samhita (I.1) ao chamar o arqueiro de "Senhor da Voz", torna evidente que a corda do arco corresponde à voz e a flecha ao conceito audível. Pensamos aqui imediatamente no uso de mantras e outras expressões sagradas com fins meditativos ou de poder, pois é dito no Aitareya Aranyaka II.5 que "impelida pela Mente, a Voz fala". Esta imagem da flecha disparada pelo arco ou a voz pela mente reforça o simbolismo "alado" que já vimos anteriormente entre os gregos. Igualmente, a flecha em voo pode representar um pássaro (em sânscrito "pattarim" que significa "alado") é tradicionalmente o símbolo do espírito livre da matéria.


A flecha colocada no arco, apresenta da maneira visual e inequívoca o conceito do "caminho do meio" -- uma vez que fica posicionada aproximadamente no meio do arco, entre os dois extremos, que como já vimos remetem para o "Céu" e a "Terra". Estamos portanto a lidar com a ideia da "harmonia". Entre os filósofos gregos, o pensamento de Heráclito é o que mais se baseia nesse conceito de harmonia, visto como ponto mediano ou de equilíbrio entre extremos:


"Eles não compreendem como, separando-se, podem se harmonizar: harmonia de forças contrárias, como o arco e a lira." (Frag. 51)


E igualmente:


"O arco (bíos) tem por nome a vida (biós) e por obra a morte" (Frag. 48)


Estas ideias correspondem exactamente ao espírito apolíneo resumido na sentença "Nada em excesso", que podem ser experimentadas na correta tensão aplicada para "dobrar" o arco e disparar a flecha.

Outro ponto de coincidência simbólica entre o mundo grego-romano e o hindu, está na representação do Deus do Amor e do Desejo como arqueiro: Kama entre os hindus e Eros/Cupido entre os greco-romanos. A actuação desses deuses ao inflamar o desejo e o amor naqueles que são feridos por suas flechas, assemelha-se ao actuar de Apolo e Ártemis, que como vimos, disparam de longe as suas flechas ocasionando a "morte iniciática" (simbólica ou literal) de homens e mulheres que foram por eles "eleitos". A associação da Morte e o Amor também não nos deve surpreender, já que está abundantemente demonstrada em diversos estudos simbólicos e através de imagens (evidentemente não podemos tratar desse assunto aqui, mas recomendo aos leitores interessados que procurem o ensaio "The Greek Sphinx" de Ananda K. Coomaraswamy) -- e retratam a passagem de um estado ou plano para outro ou, se preferir, à mudança interior provocada pela entrada da energia transcendente no indivíduo que o eleva ("amor") ou o leva para outro reino ("morte") de consciência (lembramos que os ritos de iniciação no mundo Tradicional também apontam para o simbolismo da "morte" ou "segundo nascimento").


Nas escrituras cristãs, em particular nos Evangelhos, a palavra que se encontra nos originais gregos para "pecado" é "hamartia". O significado desta palavra não tem as conotações moralistas, sentimentais e religiosas associadas à nossa palavra "pecado". Antes, significa literalmente "errar a marca" e refere-se, como deve ter ficado evidente, ao arqueiro que erra o alvo ao disparar a flecha (nas tragédias gregas, "hamartia" significa a "falha trágica", em geral excesso de orgulho, que trás a queda do protagonista). Quando interpretada dessa maneira, evita-se o excesso de culpa que pode paralisar a consciência bem como a sensação de "expiação" necessária ou "mancha" aderida à alma. Torna-se apenas questão "técnica" e de "prática". Novamente, encontramos nas escrituras hindus ideias semelhantes, onde o termo utilizado é "aparadh" significando "errar o alvo", "extraviar", "falhar", "pecar". No Taittiroya Samhita II.5.5.6 é dito que aquele que erra o seu alvo se faz pior (papiyan) enquanto aquele que acerta é como deve ser.
 
O Arco no Mundo Tradicional

Já temos agora diversos elementos e símbolos ao nosso dispor que nos permitirão aprofundar os nossos estudos com exemplos concretos de textos, ideias e mitos tradicionais que utilizam o arco ou a figura do arqueiro para transmitir conhecimentos ou práticas iniciáticas. Apenas para fins de exposição, iremos dividir esta seção em sub-seções relacionadas a áreas geográficas (Oriente, Oriente Médio e Ocidente) mas o leitor deverá ter em mente que , a rigor, não existe nenhuma separação em termos de doutrina ou simbolismo entre essas civilizações. Conforme já enfatizado por Julius Evola não existe nenhuma separação dentro do mundo Tradicional entre "oriente" e "ocidente": o que existe são civilizações que seguem os princípios Tradicionais e as que não seguem.


Dentro dessa esfera de ideias, ou seja, àquelas pertencentes ao que é típico do mundo Tradicional, encontramos aquela que se refere ao uso cerimonial ou mágico de objectos consagrados ritualmente para determinado fim. Não se trata de maneira nenhuma de "superstição", "fetichismo" ou "animismo" (utilizados aqui num sentindo antropológico e profano) mas antes de técnica precisa e bem determinada. Basta pensarmos nos ritos descritos no Rig Veda e naquilo que os romanos denominavam numen (para descrição mais detalhada consultar "Revolta Contra o Mundo Moderno" de Julius Evola). Embora não encontremos textos sobreviventes a respeito da consagração específica de arcos, podemos deduzir a existência de ritos associados a outros objectos em que de facto isso deveria ocorrer. A título de exemplo, narraremos a tradição associada a Héracles (Hércules) e a tomada de Tróia (seguiremos o texto da tragédia Filoctetes de Sófocles).


Hércules, como sabemos, representa o espírito heróico que, através do esforço, alcança a imortalidade Olímpica. Também representa a luta do princípio solar contra as forças do caos e matriarcais. Entre seus feitos contam-se os famosos "Doze Trabalhos" (sendo o 12 um número solar, relacionado ao ano) e a sua busca pelo Velo de Ouro (outro símbolo solar) juntamente com os Argonautas (empreitada essa que estava sob a bênção de Apolo -- cf. Argonautica). No que diz respeito a Tróia, fala-se de uma tradição em que apenas utilizando o arco de Hércules seria possível conquistar a cidade (é aqui portanto que se inseria a ideia de um objecto investido de poder superior). Tal arco estava sob a posse de Filoctetes mas que no caminho para Tróia foi abandonado numa ilha após ter sido picado pela serpente guardiã do templo da ninfa Crise (o Velo de Ouro também era guardado por um dragão -- voltaremos ao tema dos "guardiões ofidios" no final deste estudo), uma vez que tal ferida não curava e exalava cheiro insuportável. Abandonado à sua própria sorte, tinha apenas consigo o arco e as flechas herdados de Hércules. Finalmente, após anos de solidão e após um oráculo ter sido proferido indicando que apenas com o arco de Hércules seria possível reverter a situação, a delegação composta por Odisseu (Ulisses) e o filho de Aquiles, Neoptólemo, parte em direção à ilha rochosa. Como Odisseu tinha sido o culpado pelo abandono de Filoctetes este recusa-se a voltar e ajudar na conquista de Tróia. Não nos interessam aqui, todos os temas tratados ao longo da peça, mas apenas a intervenção final de Hércules (v. 1410 - 1440):


"(...) Fica certo de que a voz de Héracles
teus ouvidos escutam e teus olhos veem sua imagem.
Para te fazer um favor, as mansões celestes
deixei e venho
para te revelar as decisões de Zeus
e desviar do caminho que pretendes seguir.
Presta atenção às minhas palavras.


Em primeiro lugar, vou contar-te a minha sorte, os trabalhos que sofri e suportei, antes de adquirir a glória imortal que podeis contemplar. Também a ti, podes crer, te está destinada sorte igual: ter vida gloriosa, depois dos sofrimentos de agora.

(...) com as minhas flechas despojarás da vida a Páris (...) e arrasarás Tróia. Os despojos, enviá-lo-ás ao teu palácio (...). Mas o que receberes do exército em memória das minhas armas, leva-o ao meu túmulo.


A ti filho de Aquiles, dirijo também meus conselhos, pois nem tu podes tomar a cidade de Tróia sem ele, nem ele sem ti. Como parelha de leões que vivem juntos, deveis guarda-vos mutuamente: ele a ti e tu a ele.


Eu enviarei para Tróia Asclépios [Deus associado à cura, filho de Apolo, e cujo símbolo era a serpente], que te curará da enfermidade [Filoctetes] (...) Mas atendei ao seguinte: quando tiverdes devastado a terra, sede reverentes para com os deuses. Zeus Pai considera de somenos tudo o resto. É que o respeito pelos deuses não perece com os mortais. Quer eles vivam, quer eles morram, não se desvanece."


Neste longo trecho citado, encontramos diversos temas e símbolos Tradicionais (tais como o "leão", símbolo do sol, da luz, do espírito; a imortalidade Olímpica e o culto ao herói) -- mas não poderemos nos deter neles. Fica claro, contudo, que o uso do arco como arma ritual está plenamente presente nas imagens evocadas aqui.


O leitor atento seguramente percebeu a semelhança simbólica e estrutural com outro tema Tradicional: a demanda do Graal. Que sirva de modelo esquemático apenas o seguinte (para um estudo mais profundo destes temas, consultar "O Mistério do Graal" de Julius Evola):


Filoctetes/Neoptólemo/Arco/Ilha/Tróia
Amfortas/Parsival/Graal/Castelo/Terra Devastada


Outra ideia de capital importância e que deve ser mencionada e mantida em mente pelo leitor é o uso do arco como arma típica da realeza ou da aristocracia guerreira. Nos exemplos que apresentaremos abaixo, esse tema irá reaparecer constantemente. Ou seja, dentro da visão Tradicional das castas, o arco será predominantemente empunhado pela casta do guerreiro, do rei-sacerdote, do herói solar (existe a notável, mas não surpreendente, exceção: a Europa cristã, onde o arco era visto com desprezo pela nobreza mesmo quando a sua eficiência na guerra era palpável). O valor do arco só foi devidamente apreciado após a introdução das armas de fogo. Antes disso, embora valorizado na guerra por alguns monarcas e sua prática incentivada, não se podia encontrar associado ao arco nenhum simbolismo heróico ou transcendente tal como nos iremos  referir aqui. Tanto é assim que nos primeiros manuais escritos sobre o uso do arco, o Toxophilus, de Roger Ascham, faz-se extensivo uso de fontes gregas ou símbolos clássicos, tal como Apolo, para justificar o uso e a nobreza do arco, pois não poderia encontrar tais símbolos dentro da tradição cristã).


O Arco no Oriente

Já tivemos a oportunidade de mencionar a prática do Kyudo, como Caminho Marcial que visa, na sua forma original, não apenas a perícia técnica mas também o desenvolvimento harmonioso do corpo, mente e espírito. O Kyudo sofreu grande influência do Xintoísmo e guarda até hoje, na sua forma ritual, traços dessa influência. Existe uma cerimónia em particular que consiste no tanger das cordas do arco para afastar todas as influências e espíritos inferiores do ambiente. No kyudojo (o lugar onde se pratica o Kyudo) é comum haver um altar dedicado a um kami (semelhante ao numem romano) e entre as divindades xintoístas Hachiman, o Deus da Guerra, é retratado a segurar o arco. Além da prática que poderíamos chamar de "desportiva" existem disparos que são realizados cerimonialmente e visam outros fins que não apenas "acertar no alvo". Diversos termos aplicados ao aspecto técnico do Kyudo também fazem referência a aspectos espirituais. Entre eles, queremos destacar o termo zanshin: após o disparo, o praticante deve manter a sua postura e concentração. O termo pode ser traduzido como "corpo (ou espírito) remanescente" e deve ser visto como a reverberação do sino. É o estado em que o espírito flui conjunto com o tiro, e forma a unidade entre arqueiro, alvo e flecha.

Na China, encontramos o ritual realizado quando nascia o herdeiro real, que consistia em 6 disparos feitos pelo arqueiro mestre em direção ao Céu, à Terra e aos 4 quadrantes (Li Chi X.2.7). O mesmo é dito acontecer no Japão. Ora, tais disparos equivalem a simbolicamente  a unir, com um raio de sol, todos os mundos.


Nas tradições da Índia, encontramos a história de Rama, o herói solar que combate os demónios das trevas e do caos, liderados por Ravana. Considerado  avatar de Vishnu (em muitos casos comparado a Apolo), Rama é chamado de Maryada Purushottama, literalmente "O Homem Perfeito", ou seja, "iniciado" e a sua vida é o exemplo de realização do dharma ( caminho específico atribuído a cada pessoa, pela sua casta, para  maior realização espiritual). A história gira ao redor do rapto de Sita, sua esposa, por Ravana. Ora, na Tradição hindú a "mulher" ou "esposa" é vista como a personificação do "poder" (shakti) associado ao Deus. Entre os feitos que Rama realiza, o primeiro está relacionado com a "conquista" da sua shakti: Vishwamitra convida dois príncipes Rama e Lakshmana para disputarem a mão de Sita, através da prova de curvar o arco de Shiva e disparar a flecha com ele.  Visto vez que essa é a arma de Shiva, nenhum rei mortal seria capaz de alcançar o feito. Contudo, Rama ao tentar colocar a corda no arco, simplesmente o parte em dois. Tal acto de força, espalha -se por todos os mundos e Rama conquista a mão de Sita. Porém, um rishi chamado Bhargava  ao saber de tal feito não consegue acreditar e decide testar Rama. Alegando ser o sexto avatar de Vishnu ele apresenta-se perante Rama com o arco de Vishnu e novamente  o desafia a colocar a corda no arco. Rama respeitosamente curva-se perante o sábio-eremita e, num piscar de olhos, rouba-lhe o arco das mãos, coloca a corda e aponta a flecha para o coração do desafiante. Reconhecendo a sua derrota e que Rama lhe é superior, ele abandona o mundo dos homens. Rama então dispara a flecha com o arco de Vishnu para o céu em conformidade com a sua natureza divina e diz-se que a sua flecha ainda hoje viaja pelos mundos -- quando ela retornar a este mundo, marcará o seu fim. Outra tradição também afirma que a flecha ao voar destrói todo o mal e fortalece o dharma e a justiça. Note-se que como é comum em objectos consagrados ritualmente, o arco de Rama tem um nome, que é Kodanda.


Outro exemplo bem conhecido pode ser encontrado na Bhaghavad Gita, onde o arqueiro Arjuna é instruído por Krishna na doutrina aristocrática e guerreira do "yoga da ação". Arjuna é geralmente visto como o ego humano que é instruído pelo divino instrutor, o Espírito, e a guerra entre as duas facções inimigas é vista como combate simbólico e interior entre a natureza inferior e superior do adepto. Desnecessário dizer que a exposição apresentada no Gita é a melhor e mais clara doutrina da espiritualidade guerreira disponível para nós. É explicitamente dito que tal ensinamento já tinha sido revelado noutros ciclos, e que novamente estava a ser ensinado através da "dinastia solar", Suryavansa . O grande ensinamento contido aqui é dirigido à casta dos guerreiros, kshatrya e gira em torno do conceito de katam karaniyam, ou seja "fazer o que deve ser feito", de maneira impessoal, sem apegar-se aos frutos das suas obras, indiferente ao sucesso ou ao fracasso, dor ou prazer, sem se preocupar com "vantagens" advindas da realização daquilo que é visto como sua lei interna (dharma). No épico Mahabharata, no qual se insere o Gita, Arjuna é visto a realizar disparos de incrível destreza. É-nos dito que apenas ele era capaz de manipular o seu arco correctamente e que, à semelhança do arco de Rama, também possui nome, Gandeva.


As escrituras hindus fazem a comparação dos dois braços do arqueiro com dois deuses Mitra e Varuna, reunindo, no arqueiro, as duas figuras do "rei e sacerdote". É portanto em sua condição de kshatrya que tanto Rama quanto Arjuna são capazes de realizar as obras que realizaram bem como receber os ensinamentos solares.


No Mundaka Upanishad encontramos o resumo desses ensinamentos e  das mais interessantes descrições do papel simbólico do arco:


"Tendo segurado o arco, deixe-o colocar a flecha, afiada pela devoção. Então, após armá-lo com pensamento dirigido àquilo que é, atinja o alvo, oh amigo -- o Indestrutível. OM é o arco, o Eu é a flecha, Brahman [O Absoluto] é chamado o seu alvo. É atingido pelo homem que não é insensato, e assim como a flecha se torna una com o alvo, ele se tornará um com Brahman. Conheça apenas Ele como o Eu, e abandone outras palavras. Ele é a ponte para o Imortal. Medite no Eu como OM. Salve aquele que pode cruzar para além do mar da escuridão".


O Arco no Oriente Médio

Da mesma maneira que na China e no Japão era feito o disparo ritual aos 4 quadrantes, também encontramos no Egipto o mesmo ritual mas dessa vez durante a cerimónia de entronização do faraó. Como é sabido, o faraó era visto como encarnação de Hórus, o deus falcão, símbolo do Sol, que vingava a morte do Deus Osíris, seu pai , que fora desmembrado pelas forças do caos personificadas em Seth. Uma outra variação deste rito consistia em soltar 4 passáros -- mas como já vimos "pássaros" e "flechas" possuem um significado simbólico semelhante. Em várias estelas, monumentos e templos os faraós são normalmente retratados em carros de guerra, segurando os seus arcos armados. Em particular, Ramsés II era tido como arqueiro bastante talentoso.


Dentro da tradição islâmica, é dito que o profeta Maomé era habilidoso com o uso do arco. Alega-se que 5 de seus arcos foram conservados e podem ser vistos em museus árabes. Como se sabe, o Alcorão é considerado revelação direta de Deus (Allah) através do arcanjo Gabriel para o profeta. Contudo, alguns ditos (hadiths) considerados inspirados mas não revelados, também gozam de particular veneração e são constantemente consultados para todos os aspectos da vida. Dentre esses hadiths, contam-se aproximadamente 40 relacionados com o arco (Sacred Archery: The Forty Prophetic Traditions, Katih Abdullah e Mustafa Kani) -- vejamos alguns:


"Aquele que faz a flecha, aquele que apresenta a flecha e o que dispara a flecha estão destinados ao paraíso."


"Ensine às suas crianças a ler o Alcorão e atirar com arco" [Platão, nas Leis, também aconselha que as crianças sejam treinadas desde cedo na prática do tiro com arco].


"Os espaços entre onde a flecha é disparada e onde ela cai são jardins do paraíso para vocês."


Existem três passatempos criados para o homem, que Allah aprova: "Andar a cavalo, atirar com arco e fazer amor com sua mulher."



Outro hadith diz que Maomé atirava com o arco para afastar a tristeza e a preocupação.

Uma tradição alcorânica também afirma que foi Gabriel quem revelou a Adão o uso do arco, com as palavras: "Este arco é o poder de Deus; esta corda, sua majestade; estas flechas são a cólera e o castigo de Deus para os seus inimigos". Desde Adão, tal ensinamento foi sendo transmitido através da "cadeia" de profetas até Maomé (a mesma ideia da "Cadeia Dourada" de Zeus), cujo companheiro Abi Waqqas, "o paladino do Islão", foi o primeiro que disparou contra os inimigos do Islão, tornando-se assim o padroeiro das ordens turcas de arco e flecha, cuja transmissão iniciática nunca se interrompeu (talvez, quem sabe, apenas muito recentemente). Vamos passar brevemente pela cerimónia de iniciação de tal ordem (acompanhando a exposição de Amanda Coomaraswamy em "El Tiro con Arco"):



Estas ordens são realmente iniciáticas e mesmo com a introdução das armas de fogo, o caráter sagrado do arco não se perdeu, e onde só é possível entrar por qualificação e iniciação. No que diz respeito à organização elas são regidas pelo  "sayj do campo" e toda  a qualificação fica a cargo do mestre (usdat). Ao ser aceite, o discípulo deverá passar pelo rito em homenagem às almas de Abi Waqqas, dos arqueiros iman de todas as gerações e todos os arqueiros crentes. O mestre transmite ao aspirante o arco com as palavras:
"Segundo o costume de Allah e do Caminho (sunna) do seu Evangelho escolhido...", o aspirante então recebe o arco, beija a empunhadura e o arma. Quando finalmente se torna hábil, então a aceitação formal por parte do sayj acontece. Após algumas provas demonstrando a sua habilidade e com a aprovação do sayj, o candidato ajoelha-se e levanta o arco em direção ao sayj, que o arma e coloca a flecha na corda, por três vezes, de acordo com regras rituais bem estabelecidas. O sayj então instrui o mestre de cerimónia para que leve o discípulo ao seu mestre de quem receberá a empunhadura (gabza) -- que nada mais é que o símbolo exterior da sua iniciação. Ele ajoelha perante o mestre e beija a sua mão; o mestre toma a sua mão direita em sinal de vínculo (cujo modelo é o Alcorão, XLVIII. 10-18) e sussurra o "segredo" no seu ouvido. O aspirante agora é  membro da ordem dos arqueiros e elo na "cadeia" que remete até Adão. A partir de então não  usará mais o arco a não ser que esteja ritualmente puro, antes e depois de usar o arco beijará sempre a sua empunhadura. Ao disparar a flecha, também irá entoar "Deus é Grande!" (note-se o uso da fórmula mântrica, como já notado acima. Nesse contexto, esta frase é simbolicamente vista como  "flecha espiritual" atirada pelo discípulo juntamente com a flecha "fisica" disparada pelo seu arco). A empunhadura como símbolo merece mais a nossa atenção: ela é vista como a parte "média" do arco e é a chave para o "segredo" comunicado ao discípulo. Assim como vimos mais acima, alude à harmonia e à justa medida que permite disparar a flecha de maneira equilibrada. No contexto que discutimos aqui, a empunhadura é o elo entre Maomé e Allah, e é o que une as duas metades do arco, tornando-o "uno". Também pode ser visto como  símbolo do Axis Mundi, ou na terminologia islâmica, como o Qutb.

O Arco no Ocidente

Na tradição nórdica encontramos no Edda Poético a história de como o Deus Heimdall (aqui chamado de "Rig" uma palavra irlandesa para "Rei") que ao andar pela Terra (Midgard) gerou as três castas ou classes que compunham a sociedade viking: a dos escravos (thrall), dos fazendeiros e dos nobres. A maneira como as castas (ou melhor, os descendentes de cada casta) são gerados é semelhante para cada uma delas: Rig  hospeda-se por três dias na casa de um casal "arquetípico" e sempre dorme entre eles por três noites. Os filhos de cada casal, possuem nomes simbólicos das suas funções. É assim que caminhando pela Terra e já tendo gerado as castas anteriores, Rig se encontra com "Pai" e "Mãe" que darão origem à classe aristocrata e guerreira de nobres conhecidos como jarls. É significativo que uma das ocupações de Pai é justamente a de confeccionar arcos, flechas e cordas (Rigsthula, 28). Após as três noites, como nos outros casos, Pai e Mãe concebem  o filho gerado por Rig cujo nome é "Senhor". E assim como o seu pai, especializa-se nas atividades guerreiras: equitação, natação, confecção de arcos e flechas, caça, lutar com espadas e escudos etc ( Rigsthula, 35). Contudo, ao contrário do que aconteceu com os outros casais, Heimdall (Rig) retorna para não apenas revelar a Senhor que ele é seu filho, mas também para ensinar-lhe o uso das Runas.


As Runas eram as letras utilizadas no alfabeto nórdico e também tinham funções mágicas e oraculares. O significado de "runa" é "mistério". Seu uso ia desde inscrições tumulares e pedras cerimoniais até propósitos de cura e proteção. Foram encontradas flechas, espadas e lanças com Runas gravadas. Observe-se então que mais uma vez temos a confluência do "rei-sacerdote" (as Runas foram o dom de Odin, o deus da guerra, da poesia, da magia e da morte entre os nórdicos. É significativo que Odin tenha feito o sacríficio  de si próprio, enforcando-se e ferindo-se por sua lança, na Árvore do Mundo, Yggdrasil, para obter o conhecimento das Runas). Assim como o arco era basicamente utilizado pela nobreza -- tanto na guerra como na caça -- igualmente as Runas o eram. 



Entre os deuses nórdicos encontramos Ullr, o deus caçador e arqueiro, cujas flechas podiam ser vista nas "luzes do norte" (a aurora boreal), habitando as regiões longíquas e desoladas do norte (ele era associado ao inverno e à morte). Ullr era particularmente invocado para combates individuais e patrono dos juramentos feitos sobre um anel sagrado. É dito que Ullr habita uma região em Asgard conhecida como "Ydalir", que significa "Vale dos Freixos" -- como já vimos, esta é uma da melhores madeiras para a fabrico de arcos e está associada com a Árvore do Mundo, Yggdrasil. Outra deusa que tinha características semelhantes era Skadi -- também associada às montanhas geladas, à caça e ao arco. Ambos possuem características tão semelhantes que alguns estudiosos já cogitaram a relação mais próxima entre eles -- tal como de marido e mulher ou irmãos. Essa inferência é ainda mais forte quando analisamos os seus nomes: "Ullr" deriva da antiga palavra para "Glória" que era associada ao céu, e por extensão ao Pai-Céu adorado pelos povos Indo-Europeus (tal como Zeus entre os gregos), e que representa a espirituailidade Olímpica e o Absoluto. "Skadi", por sua vez, significa "sombria", é associada assim à Mãe-Terra. Ora, encontramos  relação semelhante entre Apolo (Sol) e sua irmã gêmea Ártemis (Lua), ambos, como já vimos arqueiros.

Ainda dentro da análise dos nomes, é significativo apontar para o facto que "Heimdall" pode ser traduzido como "O Arco do Mundo", o arco-íris, que era visto como a ponte entre o mundo dos Deuses (Asgard) e o mundo dos humanos (Midgard). Heimdall, além da função civilizatória e iniciática que vimos acima, tinha como principal papel guardar a entrada do mundo divino e avisar aos deuses, ao tocar a sua trompa, do avanço dos gigantes de fogo saidos de Muspellheim para combater os deuses durante o final do ciclo do presente universo. O equivalente hindu de Heimdall é o deus Agni, que como já vimos se relaciona com o Fogo purificador do ritual.


Ainda temos algo mais a falar sobre Apolo. Como é sabido, este deus é visto como o símbolo da Tradição Hiperbórea e de todas as qualidades viris, heróicas e solares do mundo greco-romano. No Hino Homérico a Apolo Délio (5), vemos a reação dos deuses quando ele chega ao Olimpo:


"Todos os deuses tremem
Quando ele entra na casa de Zeus
todos se levantam quando ele se aproxima
todos se levantam de seus assentos
quando ele arma o seu brilhante arco"

E é o próprio Apolo quem diz de si mesmo (130):


"A lira e o arco recurvo eu amarei
E revelarei aos mortais
A infalível vontade de Zeus"


Já vimos quando citamos os fragmentos de Heráclito como esta passagem pode ser interpretada -- ou seja, em Apolo reúnem-se harmoniosamente os contrários. Além disso, tomamos conhecimento de outra função exercida por ele: revelar (ou personificar) a vontade de Zeus (o princípio transcendente, o Absoluto, o Incondicionado) para os homens -- agindo portanto como o "Lógos" do universo. E de facto, através de seu oráculo em Delfos, Apolo deu aos homens as duas maiores máximas da sabedoria clássica: "Conhece-te a ti mesmo" e "Nada em excesso". Tal sabedoria, calma, refletida, simples, directa e impessoal  traduz-se nas 4 virtudes clássicas de temperança, coragem, prudência e sabedoria.


Ao mesmo tempo que Apolo é o revelador da vontade de Zeus (o filósofo estóico Epicteto nos seus Discursos (III.1) cita Apolo como modelo para o sábio estóico, dizendo que aquele revelará a vontade de Zeus independente do uso ou reconhecimento que os homens farão deste conhecimento. Apolo irá cumprir com o seu dever, "fazer o que precisa ser feito", independentemente dos resultados. Já vimos essa atitude anteriormente) -- Apolo é também o guardião dessa vontade e dos seus mistérios (Hino Homérico a Hermes 535):


"(...) Fiz um juramento poderoso
que ninguém exceto eu mesmo
entre os sempieternos deuses
conhecerá a profunda vontade de Zeus
(...) não me peças para revelar os divinos segredos
que a visão longíqua de Zeus contempla".


Dentro dos textos clássicos ocidentais merece destaque a Odisseia que narra as aventuras iniciáticas de Odisseu (tido entre os estóicos, juntamente com Hércules, como símbolo e modelo do sábio ideal -- ambos excelentes arqueiros). Entre as cenas mais famosas e importantes está a do disparo magistral feito por Odisseu (Livro XXI): após 20 anos longe de casa, a batalhar 10 anos em Tróia e perdido à deriva por mais 10, finalmente Odisseu chega à sua casa, na ilha de Ítaca da qual é rei. Contudo, ele descobre que o seu palácio está ocupado pela horda de pretendentes ao trono e à mão da sua esposa, a rainha Penélope. Após plano elaborado com ajuda da deusa Athena (que simboliza métis, a mente engenhosa -- note-se que Athena compartilha com Skadi o título de "Dama Guerreira") Odisseu consegue estar presente na sala onde será efetuada a prova que, inspirada mais uma vez por Athena, Penélope arquitetou para escolher pretendente: aquele que fosse capaz de dobrar e colocar a corda no poderoso arco de Odisseu e disparar uma flecha por entre 12 machados (através do "anel" que havia no final de cada cabo) seria o escolhido. Desnecessário  será dizer que nenhum pretendente conseguiu fazê-lo. Odisseu, até então disfarçado de mendigo, solicita que lhe seja dada a chance. Debaixo de tremenda zombaria os pretendentes resolvem deixá-lo tentar, antecipando mais momentos de troça. Nesse momento então Athena devolve a Odisseu seu "aspecto divino" e ele se revela não só capaz de dobrar o arco como de efectuar o disparo, cuja corda, diz o poeta, "canta belamente" (lembre-se o leitor do simbolismo da "voz" e da "flecha"). É muito significativo que esta prova aconteça exactamente no que o texto chama a "festa de Apolo" e que Odisseu, antes de efectuar o disparo, clame: "Apolo, dai-me glória!" (Livro XXII). Esta cena é claramente decalcada de simbolismos solares (os 12 machados, a flecha com raio que os atravessa, a festa de Apolo, o rei que mata os inimigos) e  neste momento  já estamos aptos a interpretar os outros símbolos que aqui aparecem e fazer as conexões necessárias com os outros ensinamentos que já vimos.


O Arqueiro como Guardião

Se o leitor nos acompanhou até aqui, seguramente, notou o ressurgimento de diversos temas associados ao arqueiro -- em particular o facto de pertencer à linhagem real e guerreira e  a sua forte vinculação ao arco. Todos esses heróis e figuras divinas, são submetidas a provas semelhantes (tais como o esticar do arco) que só podem ser realizadas por ele ou provações específicas (o roubo da mulher), aparecem repetidas vezes. Percebe-se que arco e arqueiro estão unidos ou "destinados" um ao outro de maneira especial. Tais provas e tal vínculo são sinais exteriores da realidade interior e também são vistos como sinais de  missão muito específica. O leitor poderá então perguntar o que todos esses símbolos significam e a razão porque esses temas se repetem ao redor do mundo e em diversas civilizações, ao ponto de se pensar se não estamos de facto perante a mesma figura divina que se apresenta de diversas formas, repetindo a mesma missão ou passando o mesmo ensinamento simbólico.


Qual é, afinal, a principal missão associada ao arqueiro? 



Para respondermos a essa questão, tocaremos brevemente no simbolismo associado às figuras do querubim/serafim, da esfinge grega, do escorpião e da serpente/dragão. Vamos utilizar os estudos realizados por Coomaraswamy no seu livro "Guardians of the Sun-Door". Uma vez que não podemos oferecer em todos os detalhes as provas, evidências e estudos iconográficos realizados pelo autor remetemos o leitor a esta obra e nos contentaremos aqui em oferecer a largos traços as teses e conclusões apresentadas naquele estudo.

A primeira evidência que o autor nos apresenta está baseada na iconografia do Sagitário, que aparece desde a Assíria e Mesopotâmia atravessando o Egito, o mundo grego e oriental. Essa figura aparece invariavelmente a combater ou associada ao dragão ou outras figuras que lembram serpentes ou ofídios. Também encontramos o escorpião como inimigo ou em forma de quimera associado ao sagitário. À parte dessas figuras, também encontramos figuras aladas -- tais como a esfinge grega, as harpias, pássaros encantados -- como Garuda na Índia e a águia de Zeus na Grécia -- que aparecem como "raptores" da bebida sagrada, do herói ou condutor da alma até às moradas celestes (aqui encontramos a figura do psicopompo ou das Valquírias da tradição nórdica e ainda as Harpias gregas, que agem sob a vontade de Zeus). Outro papel exercido por estas figuras é o de guarda de lugares sagrados -- na tradição judaico-cristã temos as hostes angélicas dos querubins e serafins, que guardam o Jardim do Éden e o Trono de Deus, respectivamente. Na mesma função, encontramos grandes serpentes aladas ou dragões que guardam tesouros, entradas ou servem de guardas pessoais (entre os gregos era assim que se representava o agathos daimon). Vimos que foi graças à serpente guardiã que Filoctetes recebeu a ferida fatal, e o Velo de Ouro também era guardado por um dragão. Além disso, Apolo precisou matar a serpente Píton antes de tomar posse do oráculo em Delfo. Se por um lado podemos interpretar o confronto do arqueiro com a serpente/dragão como sendo a ilustração das forças da ordem subjugando as do caos, num plano superior podemos interpretar de outra forma. Como temos afirmado, a serpente nada mais é que outra manifestação do princípio guardião apresentando-se, porém, de forma telúrica ou "inferior". Ao ser derrotada pelo numem solar (Apolo) ou pelo herói (Hércules/Jasão no caso do Velocino), tratase apenas da legítima posse do princípio superior sobre a manifestação inferior. No caso de Filoctetes vemos o herói ainda não preparado, ou iniciado, sendo incapaz de controlar a energia ou princípio guardião.



Desta maneira, ao longo do tempo, todas essas figuras (o arqueiro, o dragão, a serpente, a esfinge, o ser alado) e símbolos foram sendo misturadas e transmigraram. E é nesse ponto que podemos juntar todos os fios que viemos desenvolvendo ao longo deste estudo: o arqueiro é por excelência o guardião dos lugares sagrados e dos ensinamentos sagrados!

A figura do arqueiro, seja como o sagitário, o herói solar, o querubim, a serpente alada, tem como principal missão a purificação do mundo e a proteção dos símbolos Tradicionais e das "portas" que dão acesso aos rituis de iniciação em toda as civilizações Tradicionais. Com   o seu arco e as suas flechas, o sagitário mantém à distância os que não são dignos e também ataca os inimigos que se apossam do tesouro, do Jardim, da Mulher Sagrada ou que ousam desafiar a Encarnação Divina (avatar). Como Apolo, são os guardiões da profecia e da vontade divina.


Não sem forte componente simbólico, é interessante notar que a constelação de Sagitário "mira" diretamente para o centro da nossa galáxia -- uma imensa esfera de luz, que pode muito bem servir de símbolo para o centro espiritual e divino do cosmos e do indivíduo, da mesma maneira que o Sol sempre o foi.


Conclusão

Hoje em dia, não é já possível encontrar na nossa sociedade as estruturas Tradicionais que permitiriam o desenvolvimento espiritual associado à prática do arco como atividade simbólica, metafísica e iniciática. O único conselho que pode ser dado a quem quiser utilizar o arco além da prática desportiva, mas também como  instrumento de contemplação e "ascese", deverá fazê-lo por conta própria, através da interiorização dos símbolos e ensinamentos brevemente esboçados aqui. Seja como for, estes símbolos ainda podem falar e guiar se tivermos nas mãos as chaves Tradicionais para isso. Não foi outro o objetivo deste nosso breve estudo.


Homenagem a vós, oh portadores das flechas
e a vós, oh arqueiros!
Homenagem!
Homenagem a vós, oh flecheiros,
e a vós, oh fazedores de arcos!
(Taittiroya Samhita, 5.3.2 e 4.2)

https://kyudo-pt.blogspot.com/2010/04/o-simbolismo-do-arco.html


 

Os Preceitos Délficos e o Caminho do Arco

Com o arco em suas mãos e a aljava cheia de flechas, o sábio enfrentará o perverso. 
Pois sua boca não diz nada de verdadeiro. 
Impelida por um coração trapaceiro, profere discursos dúbios
(Pitacos)

Introdução
O Ocidente possui um rico legado de sabedoria filosófica e espiritual que nos tempos recentes se perdeu de maneira trágica. Fascinados com a luz do Oriente – que inegavelmente tem muito a nos ensinar – damos as costas às nossas próprias tradições, que nos falam em termos familiares e que está ao alcance de nossas mãos. Tal é o caso da sabedoria compilada pelos chamados “Sete Sábios”, que se ligam à área de Delfoss na Grécia, sob a patronagem do Apolo, o Deus Arqueiro. O objetivo deste artigo é mostrar como a sabedoria destes sábios, destiladas em máximas para a vida, podem se converter em conselhos para o praticante de Arco e Flecha visto como um exercício para a vida interior.

As origens da Filosofia
Por volta do século 6 AEC, surge na Grécia e em suas colônias (que iam desde a Ásia até o Sul da Itália), surge um movimento que, embora ainda influenciado pela visão mítica e religiosa, herdada de eras passadas, começa lentamente a se desvincular dessa visão e dar origem a uma outra ordem de questões e respostas para o mistério da existência. Os primeiros filósofos gregos interessam-se principalmente pela physis, a natureza, em um sentido amplo – que hoje em dia seria chamado de “astronômico”, “cosmológico” – mas também “cognitivo”, “epistemológico” e “ontológico”.

Uma das principais preocupações da escola que surgiu na região de Mileto, era a do princípio primeiro (arché) de todas as coisas: para Tales, era a água; para Anaximenes era o ar etc. É notável que mal surge, essa nova maneira de ver, ela se divide em diversas e variadas escolas. Assim, surge a escola dos Eleatas, que atribuíam ao Ser a característica da imutabilidade e da unidade – com a consequência de ver o mundo dos sentidos como uma espécie de ilusão. Essa é a origem dos famosos paradoxos de Zeno e que muito influenciaria Platão alguns séculos depois. Ao mesmo tempo, mas em sentido contrário, surgem os filósofos que apenas enxergam a mudança e o fluxo, tendo em Heráclito (“não entramos duas vezes no mesmo rio”), seu expoente maior. Surgem também os primeiros esboços das teorias atômicas (com Leucipo) e de teorias mais metafísicas, como a escola de Pitágoras e Empedocles, com seus preceitos sobre a metempsicose, vegetarianismo e ascetismo. Surge ainda, uma outra escola que irá lançar sua sombra pelos séculos a frente, com sua eterna batalha entre nomos (“a convenção social”) e a physis: os chamados sofistas (divisão essa que terá forte influência na escola dos Cínicos).

Nota-se, portanto, que a tradição filosófica grega já surge como uma força que irá mudar completamente o panorama do pensamento ocidental – seus principais frutos sendo a ciência, a busca intelectual livre da mitologia e a busca por uma harmonia entre a natureza e a conduta humana. Dentre as figuras intelectuais que se destacam nesta fase mas que, de maneira geral e estrita, não são considerados filósofos propriamente (são vistos mais como estadistas), destacam-se os chamados “Sete Sábios”. Em parte lendários, em parte inspirados em pessoas reais, sabe-se muito pouco sobre eles: até mesmo quais deveriam pertencer à lista dos “sete” (que, aliás, é um número associado a Apolo) é controvertida. Em geral, conduto, aceitam-se os seguintes: Cleobolos de Lindos, Solon de Atenas, Quilon de Esparta, Bias de Priene, Tales de Mileto, Pitaco de Mitilene e Periander de Corinto. A tradição atribuiu a eles certas máximas e orientações que por uma afinidade de valores, foi associada ao Templo de Delfos, santuário máximo de Apolo e famoso por seu oráculo. Vamos nos voltar agora para Apolo e a tradição de Delfos.

Apolo: símbolo e valores
Apolo já foi chamado de “o mais grego dos deuses”. Nele, encontram-se reunidos os principais valores da tradição grega: a ordem, a clareza, a natureza solar, a liberdade, a lonjura – a ausência do confuso, do caos, do intoxicante. As atividades que o tinham como patrono, deixam bem claro essa influência: a medicina, a música, o tiro com arco e flecha, o direito, a fundação de cidades. Ao mesmo tempo (e logo veremos porque) Apolo também era associado com as pragas, o vento, o lobo, o corvo e a profecia. Ou seja, o mesmo deus que representa a luz (tanto a física quanto a intelectual) também possuía seu lado obscuro e sombrio.

Logo na abertura da “Ilíada”, o clássico texto sobre a guerra de Tróia escrito no século 8 AEC, Apolo é retratado como um “deus terrível como a noite” que derrama a praga sobre o exército grego, por terem roubado a filha de seu sacerdote. Ao mesmo tempo, tão logo os gregos reparam seu erro, ele suspende a epidemia. Note-se o contraste com Poseidon, que irá perseguir com sede implacável de vingança, por anos a fio, outro herói grego: Odisseu. Apolo, em meio à trágica e sangrenta batalha, coloca-se ao lado dos troianos e em especial, ao lado de Heitor, o mais nobre dos combatentes. É Apolo que barra Pátroclo, vestido com a armadura de Aquiles, em seu orgulho e pretensão desmedidos, ao avançar contra os muros de Tróia (não estava destinado a ele conquista-la) e é o mesmo Apolo quem lembra aos deuses olímpicos que Aquiles, em sua fúria pela morte de Pátroclo, fustiga e maltrata o cadáver de Heitor além de toda medida humana e nobre.

Vemos assim, que já em suas primeiras manifestações literárias, Apolo surge como guardião do limite, da ordem, da nobreza e do comedimento – sua leveza e graça se opõem de maneira inequívoca contra o pesadume de Poseidon, enquanto força cega e destrutiva da natureza. Não deveria nos causar surpresa, portanto, que um deus que reúne ao redor de si, tais valores tenha exercido certa influência e inspiração nos filósofos que justamente se debruçavam sobre o estudo do cosmos (“belo” em grego). Começando por Pitágoras que, a propósito, cunhou a palavra “filósofo” (“amante da sabedoria”) até o sonho de Sócrates com o cisne (representando Platão), encontramos símbolos e referências a Apolo. Mesmo os poetas, como Píndaro, ilustravam em seus versos preceitos associados aos valores de Apolo – tais como a moderação e a prudência – e ainda mais, comparavam seus versos a flechas que ao levar o ouvinte a conhecer o justo, o belo, o bom, atingiam seus alvos. Note-se que para os gregos antigos uma pessoa não era justa: ela conhecia o justo. E esse “conhecer” é em tudo uma atividade apolínea.

No caso de Pitágoras, a associação com Apolo se torna ainda mais íntima, uma vez que ele era considerado a encarnação ou manifestação do próprio deus! Conta-se que um enviado da terra dos Hiperbóreos (provavelmente as planícies da Mongólia e Tibete) chamado Abaris atravessou o continente carregando uma flecha dourada e a entregou a Pitágoras como uma prova de que ele era, de fato, uma manifestação de Apolo. Em sua escola, Pitágoras utilizava a música para efeitos terapêuticos e a matemática e a geometria como ferramentas simbólicas e didáticas para uma educação ampla, uma verdadeira formação de caráter.

Heráclito, por sua vez, cita Apolo como o “senhor de Delfos” que “não revela nem esconde, mas indica por símbolos” os acontecimentos. Vale lembrar que as consultas em Delfos eram feitas a uma sacerdotisa (a chamada Pítia) e esta recebia de Apolo a resposta que seria traduzida em versos pelos sacerdotes. Essa maneira indireta dos oráculos pronunciados em Delfos é a razão pela qual Apolo era conhecido como “Loxias”, o “oblíquo”.

A descoberta recente de uma inscrição em uma estátua, na cidade italiana de Velia, antiga Elea, nos mostra que o filósofo Parmênides era um “iatromantis”, uma espécie de médico/profeta de Apolo. E vale a pena lembrar que Parmênides relata em seu poema como, em uma espécie de experiência visionária, visitou as filhas da Noite e lá, após cruzar os portões que separam a realidade dos vivos e dos mortos, lhe foi revelado como o “ser e o pensar são o mesmo”, dando origem à lógica e à concepção do Ser como indivisível, imortal, único.

Famosos também são os episódios onde certas pessoas especiais são apontadas pelo oráculo causando surpresa e espanto: foi o caso quando Sócrates foi apontado como o “mais sábio” dos atenienses. O tema de encontrar o “mais sábio” também é recorrente: conta-se que um trípode de ouro (roubado por Páris quando fugiu com Helena e posteriormente jogado ao mar) foi recolhido por pescadores e nele encontrou-se a inscrição “Ao mais sábio”. Este foi então enviado a Bias, um dos Sete Sábios, que o enviou a outro e assim sucessivamente até retornar a Bias que entendendo o simbolismo, entregou e consagrou o trípode a Apolo, no seu templo em Delfos.

Aqui vale a pena mencionar o conceito bastante particular que Pitágoras tinha do oráculo de Delfos, Apolo e a Unidade. Uma figura simbólica e matemática muito importante para os pitagóricos era a chamada “tetractys” – uma figura triangular composta de 10 pontos onde cada linha tem um significado próprio (note que o número 10 também se relaciona a Apolo Musagetes, isto é, enquanto líder e condutor das 9 Musas). O primeiro ponto/linha, representa a Unidade (Apolo), a segunda linha (composta de dois pontos), representa a Díade, a dualidade, o limite e o ilimitado. A terceira linha, composta de 3 pontos, representa a Harmonia e por fim, a última, composta de 4 pontos representa o Cosmos, isto é, a totalidade. Pitágoras costumava transmitir seus ensinamentos em frases criptográficas e uma delas, que nos interessa aqui, diz respeito ao oráculo de Delfos:

O que é o oráculo em Delfos?
A Tetractys, que é em si mesma a Harmonia das Sereias.

Essa resposta alude à famosa “harmonia das esferas”, relação matemática e musical que, de acordo com Pitágoras, mantinha e fazia girar os planetas e esferas estelares. Portando, a Unidade mantinha o Cosmos unido harmoniosamente e era capaz de se revelar aos homens através de uma relação apropriada com seu oráculo.

No “Hino Homérico”, Apolo diz de si mesmo: “Amarei a lira e o arco, e revelarei aos homens a vontade infalível de Zeus”. Acabamos de ver como Apolo, através da Pítia, revelava aos homens a “vontade de Zeus”. Resta entender sua relação com o arco e a lira. Vamos encontrar a resposta para isso em Heráclito, o filósofo que via o mundo como um fogo eterno e em constante fluxo. A principal característica de seu pensamento era justamente como as forças contrárias se unem para dar origem ao mundo tal qual o vemos. A aparente contradição das coisas era subjugada por uma harmonia oculta. E em Apolo, que para Pitágoras era a “unidade”, Heráclito enxergava a união harmoniosa de dois princípios, conforme reza um dos seus fragmentos: “Ignoram como o divergente consigo mesmo concorda: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”.

Em outras palavras, Apolo, aqui, representa o Ser em sua totalidade e harmonia, onde os opostos se encontram conjugados (voltaremos a esse tema mais vezes).

Podemos observar a mesma ideia através de alguns símbolos associados a Apolo. Vamos começar pelo próprio arco: as duas pontas, unidas por uma corda, revelam de maneira bastante gráfica a união dos opostos. Muitos veem nesta imagem um símbolo do axis mundi, o eixo metafísico e ontológico ao redor do qual todos os mundos e a essência de um ser, giram. É digno de nota o fato de existir em Delfos uma pedra conhecida como omphalos – ela seria um marco, estipulado por Zeus, do “centro do mundo”. Claro que se trata de um “centro” simbólico – metafísico, se quisermos. A flecha quando colocada no arco, traça o meio, dividindo o arco em duas metades iguais: outra imagem de “ir pelo meio”, evitando os extremos. Homero nos informa, ainda, que todo arqueiro talentoso deriva suas habilidades de Apolo. E enquanto guardião dos arqueiros, ele era conhecido por Aphetor (“o que dispara”), Argyrotoxus (“do arco prateado”) e Articenens (“o que carrega um arco”).

Quanto à lira, cuja melodia, conforme dito pelo próprio Apolo no “Hino Homérico a Hermes” trás aos homens três bênçãos: o sono, o amor e a alegria (já vimos como sua melodia é comparada ao disparo de uma flecha). Na Odisséia, o poeta compara o toque de Odisseu na corda de seu arco ao experiente tocador de lira – e o som produzido é semelhante. Vale notar que Odisseu realiza seu disparo magistral por entre 12 machados durante a festa de Apolo que ocorria ao final de um ciclo de 19 anos, coincidindo o solstício de inverno com a lua nova (note o simbolismo da lua e do sol, conjugados).
Outra maneira de ver isso é comparando os dois pássaros que lhe são associados: o cisne e o corvo. O branco e o negro. Apolo também era associado ao lobo e aos rebanhos, isto é, ao caçador e sua presa. É curioso que os jovens devotados a Apolo faziam parte de uma sociedade que era dedicada a Apolo Lykeios, isto é, “Lobo” (mas também “Branco”, no sentido de “luminoso”, “claro”). Estes jovensvagavam pelas fronteiras da cidade e daí pode ter surgido algumas das lendas a respeito de lobisomens (a associação de Apolo com a profecia reforça seus laços com práticas xamânicas, como a licantropia). Essa mesma posição, “às margens”, era assumida pelos jovens arqueiros que acompanhavam os exércitos gregos.

Se existe um conceito unificador para a ideia de Apolo ou seu principal valor, seria aquilo que os gregos chamavam de “sophrosyne”, um conceito que se remete a uma mente sã, autocontrole e temperança, guiados pelo conhecimento e equilíbrio (qualidades que, como sabem todos os arqueiros, são fundamentais para um bom disparo).

É, portanto, a partir deste universo de símbolos e valores que as máximas dos Setes Sábios acabaram sendo associadas ao Oráculo de Delfos.

Antes de analisarmos essas máximas e a maneira como se associam ao tiro com arco, convém notar que pouco importa como se encara aqui a “Apolo”: independentemente de qualquer opinião sobre sua realidade metafísica ou espiritual, o que nos interessa acima de tudo é Apolo enquanto símbolo ou centro de valores.


.
. .
. . .
. . . .

As máximas dos Setes Sábios
Diz-se, com ambiguidade calculada, que as máximas coletadas dos Setes Sábios foram inspiradas por Apolo: seja como influência direta dele, seja como escritas sob seus valores. Isto é, estas máximas , representam o espírito de Apolo. Seja qual for o caso, novamente, pouca importância terá em nosso estudo. Vejamos sem qualquer pretensão à exaustão (contam-se mais de 140 máximas), ordem ou identificação, as principais máximas que chegaram a nós:

  • Conhece a ti mesmo.
  • Nada em excesso.
  • A moderação é a melhor coisa.
  • Não deseje o impossível.
  • A maioria dos homens é má.
  • Saiba quais oportunidades agarrar.
  • Seja previdente em todas as coisas.
  • A ignorância e a tagarelice é o que mais toma conta dos homens.
  • Não acalente nem mesmo um pensamento.
  • Não seja inconstante ou ingrato.
  • Prefira ouvir a falar.
  • Prefira aprender a não ter vontade de aprender.
  • Procure a virtude e evite o vício.
  • Seja superior ao prazer.
  • Instrua suas crianças.
  • Esteja pronto para reconciliar-se após disputas.
  • Evite a injustiça.
  • Não faça nada pela força.
  • Não fale mal dos mortos.
  • Honre a velhice.
  • Prefira a punição ao ganho ilícito, pois o primeiro é doloroso apenas uma vez, mas o outro para
  • vida toda.
  • Não ria dos desafortunados.
  • Caso seja forte, seja também misericordioso, assim seus vizinhos o respeitarão ao invés de
  • temê-lo.
  • Mantenha uma língua reverente.
  • Contenha a ira.
  • Não rejeite a divinação.
  • Não tenha pressa em seu caminho.
  • Obedeça às leis.
  • Os ingênuos são facilmente enganados.
  • É difícil suportar uma mudança para pior na sorte com magnanidade.
  • Delibere antes de escolher um caminho, mas uma vez escolhido, vá até o fim.
  • Não fale apressadamente, isso denota estupidez.
  • Ame a prudência.
  • Fale dos Deuses como realmente são.
  • Não louve um homem indigno por conta de suas riquezas.
  • Demonstre seu ponto pela persuasão e não pela força.
  • Valorize a sabedoria como uma maneira de viajar da juventude à velhice, pois é mais duradoura
  • que quaisquer bens.
  • O que quer que faça, faça bem.
  • Mesmo os Deuses não podem lutar contra a necessidade.
  • O poder revela o homem.
  • Não diga antecipadamente o que vai fazer, pois em caso de falhar, será motivo de riso.
  • Não reprove um homem por seu infortúnio, pois a Nemesis pode tomar conta de você.
  • Evite falar mal não apenas de seus amigos, mas também de seus inimigos.
  • Cultive a verdade, a boa fé, a experiência, a inteligência, a sociabilidade e a diligência.


O Caminho do Arco
Mesmo numa leitura rápida e superficial, notamos que muitas dessas máximas se sobrepõem ou tratam de temas em comum: a moderação, por exemplo, ou o respeito aos limites. Vamos selecionar um pequeno grupo dessas máximas e tentar aplicá-las ao tiro com arco. Gostaria de frisar que essa interpretação não era usada (até onde eu saiba) pelos filósofos ou arqueiros antigos. Mas creio que essa minha interpretação está harmonizada com o mesmo espírito que lhes deu origem.

A ideia de tentar essa interpretação é oferecer aos praticantes modernos e ocidentais um arcabouço filosófico ou espiritual que seja rico o bastante para dar à sua prática outro viés. A exemplo do “Bushido” japonês (o código de honra seguido pelos samurais) não se trata aqui de “crer” em qualquer coisa ou doutrina mas antes o de se alinhar a um conjunto de práticas, posturas e atitudes. Em outras palavras, não se oferece uma “doutrina” nem mesmo uma visão “mítica ou mística” – apenas e tão somente uma visão poética e filosófica.

Assim, meu objetivo é oferecer uma visão que possa se fortalecer mutuamente: fruto de uma reflexão sobre princípios, símbolos e valores bem como na prática constante, disciplinada e consciente do tiro com arco. Fazendo isso, iremos por em prática uma verdadeira ascese, em seu sentido grego, que nada mais é que o exercitar-se, o treino sobre si mesmo. 

Vejamos então como tornar essas máximas délficas em um Caminho.

Conhece a ti mesmo.
Sem dúvida a mais famosa de todas as máximas que chegou até nós. Hoje em dia temos a tendência a entendê-la num sentido bastante “psicológico”: uma permanente escavação arqueológica do nosso “eu”, do nosso “interior” – sempre em busca de algum assunto mal resolvido ou de supostos bloqueios escondidos. Os antigos não viam dessa maneira: para eles, a frase significava simplesmente: “saiba quem você é (você não é um deus) e reconheça seu lugar no esquema das coisas”. Para que um arqueiro faça disparos consistentes, ele também deve conhecer a si mesmo. Deve saber que não importa o tiro perfeito que acabou de dar, ele, em si mesmo, não é perfeito. Nem infalível. Ele deve conhecer seu corpo, suas capacidades, seus defeitos e limites. Igualmente, deve conhecer seu arco, suas flechas.

Nada em excesso.
Essa é talvez a segunda mais famosa e importante das máximas dos Sete Sábios. Ela abarca várias outras máximas, atribuídas a diferentes sábios, e todas expressam a mesma ideia: a moderação é a melhor coisa que podemos ter. O respeito ao limite. É interessante que quando aplicada a si mesma, a própria moderação deverá ser tomada... moderadamente! Sendo assim, momentos de total entrega ou indulgência fazem parte de um equilíbrio e balanço aplicados à vida como um todo. Aqui também encontramos a imagem do “caminho do meio” (mais tarde louvado incessantemente por Aristóteles).
Durante os treinos, todos nós sentimos a tentação de “mais um tiro” – quando já estamos atirando há duas, três ou quatro horas seguidas. Nossa preparação não deve nunca ultrapassar os limites do nosso corpo, do nosso tempo para com outras pessoas e afazeres. Ao mesmo tempo, as desculpas que inventamos para não treinar, nos jogam no outro extremo: o da inatividade. Outra maneira de ver isso é sua própria maneira de segurar o arco: se muito firme, ao disparar a flecha, um pequeno e involuntário movimento poderá alterar seu curso. Se muito fraco, o arco irá balançar e tornar a mira errática.

Não deseje o impossível.
Ir além de suas próprias forças ou sucumbir a um excesso de orgulho por conquistas passadas, nos faz querer cruzar limites ou nos testarmos além de nossas forças. Os gregos tinham um nome para isso: hubris, o orgulho desmedido. Quando desejamos o impossível é então que estamos mais próximos da queda. Note que não se fala aqui em inatividade, em abrir mão de seus desejos ou ambições. Mas que se note o que é próprio e factível para sua vida, sua pessoa e suas condições. Se você é um arqueiro que acabou de começar, não é irreal que com o treino você passe a atirar melhor. Mas pode ser irreal querer se tornar um campeão olímpico ou mundial. Analise os fatos e condições ao seu redor. Seu equipamento, suas condições financeiras, suas possibilidades de treino.

Saiba quais oportunidades agarrar.
Entre os gregos, havia dois conceitos distintos do tempo: aquele que marcava o avanço do dia, chamado de chronos (de onde vem o nosso “cronometrar”) e que é uma simples sucessão de eventos sem nenhuma qualidade especial e outro, chamado khairós, que é “o momento certo”: aquela janela de oportunidade que se abre repentinamente. Nem todo momento é oportuno para todas as coisas. É preciso estar alerta, colocar-se no centro e manter-se atento, com a mente calma e serena para perceber o khairós. Todo arqueiro já sentiu, pelo menos uma vez, esse momento: quando tudo está certo, os movimentos fluem, os músculos encaixam e antes mesmo da flecha atingir o alvo sabe-se que acertamos o centro do alvo. Como fazer com esse momento perdure? Como trazê-lo para nós quando estamos atirando de maneira errática e relapsa? Talvez as respostas estejam nas máximas anteriores: conheça-se, não tente o impossível, não force os limites.

Seja previdente em todas as coisas / Ame a prudência.
O previdente é aquele que pode enxergar antecipadamente o resultado de uma ação e assim é capaz de tomar as atitudes adequadas. Podemos pensar na imagem de alguém posicionado no topo de uma montanha e que vê um exército se aproximando. Seja pensando no futuro ou de um ponto elevado, o previdente é alguém se coloca à distância e pode deliberar com calma. Um dos epítetos de Apolo era Hekaergos ou Hekēbolos, ambos significando, “o que atira de longe”: esta é, como se sabe, a postura de um arqueiro: que mira e atira de longe contra seu alvo. O arqueiro é previdente também num sentido bem prático: ele se exercita em mentalmente ver sua flecha atingindo o alvo. Em sua mente, ele repassa todos os movimentos necessários para armar o arco, encaixar a flecha, assumir sua postura e então atirar. A visualização é uma das técnicas mais poderosas que um arqueiro tem em seu treino. Ou sua vida.

Não acalente nem mesmo um pensamento.
Essa é uma frase um tanto quanto difícil de entender. Talvez seu sentido seja a de que em um mundo em constante fluxo, onde todas as coisas mudam e passam, agarrar-se até mesmo a um pensamento é algo imprudente. No contexto do treino com o arco o pensar demais na hora do tiro é bastante prejudicial. Se por um lado visualizamos nosso tiro de maneira clara e detalhada, por outro, durante o preparo para o tiro pensar em muitos detalhes pode nos paralisar ou tirar a naturalidade instintiva que tora o tiro harmonioso.
Para isso, uma técnica simples é recomendada: repita uma frase o tempo todo. Sim, a mesma ideia por trás de um mantra. Essa frase irá distrair sua mente consciente e deixará com que a técnica que você tanto lutou para absorver aconteça de maneira natural.

Não seja inconstante ou ingrato.
Todos nós temos uma dívida de gratidão para com todos aqueles que vieram antes de nós e nos passaram seus conhecimentos, experiências e descobertas. Na próxima vez que empunhar seu arco, lembre-se que você segura em sua mão a história de uma arma que se estende por 35 mil anos no passado. Uma arma, uma ferramenta, que sustentou a espécie humana: que nos deu alimentos e segurança. Seja grato a todos esses arqueiros que viveram antes de você. Lembre-se também de seus instrutores e técnicos. Daqueles que trouxeram a prática do arco para lugares onde antes não havia. A gratidão perante as pessoas e a vida é a marca de alguém que encontrou seu equilíbrio, sua serenidade, seu caminho do meio. A constância de caráter, de propósito, de atitudes é não apenas um meio para nos tornarmos pessoas melhores mas também um fim em si mesmo. A constância também é uma meta em nossa prática. Na verdade, esse é simples mas difícil segredo do tiro com arco: repetir, com precisão milimétrica, a cada tiro, toda a sequência de passos e pontos que são necessários para disparar a flecha. Dê um único tiro perfeito – depois repita mil vezes. E lembre-se se ser grato a você mesmo também por cada tiro perfeito. Afinal, você também faz parte dessa longa e ininterrupta linha de arqueiros. Tenha reverência por essa tradição!

Prefira ouvir a falar / Mantenha uma língua reverente / Evite falar mal não apenas de seus amigos, mas também de seus inimigos.
O silêncio sempre foi valorizado por todas as escolas filosóficas (na Grécia e fora dela). Pitágoras impunha a seus novos alunos alguns anos de silêncio para que se criasse a atitude apropriada para receber os ensinamentos mais elevados. Não é preciso mencionar o alto grau de disciplina que isso exige. O silêncio parece, de fato, nos tornar receptivos a detalhes mais sutis e nos permite saborear melhor aquilo que nos foi passado. A concentração, a contemplação e a meditação só podem ocorrer num ambiente envolvido pelo silêncio. Infelizmente, não é isso que encontramos em muitos stands
(contraste-se com o caráter quase sagrado que encontramos nos dojos onde se treina o Kyudo, a modalidade japonesa do tiro com arco). Muitas vezes, quando estamos irritados por uma série (ou round) ruim, o ideal é pararmos de atirar, nos afastarmos, mantermos alguns momentos de silêncio e isolamento. O excesso de pensamentos, de análise ou de ficar conversando incessantemente sobre os tiros ou o processo de atirar, pode causar mais dano do que benefícios. Ouvir, num sentindo amplo e profundo, é realmente uma (difícil) arte. Estar aberto ao que o outro, a vida, o mundo tem a dizer – sem interrompê-los com nossas opiniões (doxa) – é um exercício (askesis) constante. Em muitas tradições espirituais, os ensinamentos mais profundos e elevados nunca são postos por escrito – mas sempre passados oralmente de mestre a discípulo. Muitos dos filósofos que aqui falamos, aqueles que realmente fundaram escolas que mudaram o curso da história (por
exemplo Sócrates ou Pitágoras) não deixaram nada escrito. Eles ensinavam pelo exemplo e pelas ações. A seus discípulos cabia “ouvir” essa melodia sutil. Igualmente, no tiro com arco, é possível aprender muito com livros e artigos – mas somente a relação com o treinador, ouvindo suas orientações e conselhos, é que irá proporcionar ao praticante o verdadeiro avanço. Ouvir longe de ser algo passivo é uma atividade no qual nos engajamos. Ouvir é uma ação que quando executada propriamente nos muda e transforma. E quanto mais nos dispomos a ouvir, mas tempo nos sobra para a reflexão, para ponderar e chegar ao fundo das questões e situações que encontramos. Com isso, perdemos também o hábito de falar precipitadamente sobre tudo e todos. E, o que é ainda pior, falar mal de tudo e todos. É relativamente fácil (embora o façamos com bastante frequência) evitar falar mal de nossos amigos. Mas uma alma nobre se revela por também não falar mal de seus inimigos. É preciso lembrar que também pode-se ter inimigos nobres, em cuja oposição reside uma chance de crescimento e melhoria. A competição (agon) como vimos deve ser tratada de maneira impessoal. Temos inimigos por algumas
horas durante uma competição, mas que podem ser amigos para toda uma vida. Falar mal deles, sob quaisquer circunstância, não revela a pequenez deles – mas a nossa. Também é uma questão de prudência evitarmos falar muito e antecipadamente de nossos planos. Há fatores demais que estão fora de nosso controle. É preferível executar nossos planos em silêncio. Dividir os frutos quando a jornada está encerrada. Ou a flecha disparada.

Procure a virtude e evite o vício / Evite a injustiça.
A palavra que em grego é traduzida por “virtude” é arete. Esta expressão originalmente e, de maneira especial em Homero, indica antes valor e habilidade militar. Com o tempo, ela foi gradualmente recebendo o sentido moral que o nosso termo “virtude” abrange. Mas, mesmo assim, a palavra “virtude” tem sua origem no latim, virtus, que indica mais uma vez, “força” ou “virilidade”. Arete também pode ser traduzida como “excelência” e nesse sentido diz que cada coisa ou ser vivo tem sua arete própria: assim, um cavalo tem uma arete própria (a velocidade, por exemplo) que será diferente daquela do leão (a força). Os filósofos também adaptaram esse sentido para os seres humanos e, em geral, atribuíam como a arete de um ser humano uma série de virtudes: desde a sociabilidade até diversos tipos de sabedoria (métis, pronesis, sophrosyne). No que diz respeito ao tiro com arco, a transposição é tanto óbvia quanto rica: um arqueiro deve procurar sua arete, aquela que é típica e própria do tiro com arco. Não esqueça nunca que o arco é uma arma, com uma longa história de batalhas, guerras e conflitos. Também foi (ainda é) usado para a caça durante milênios. Existe uma tradição guerreira e heroica que se liga ao arco – e neste sentido ele mantém todo o sentido original de arete. Mas, claro, ele pode nos inspirar a muito mais que isso. Pode nos instilar o conhecimento do justo, do bom e do belo – refletindo sobre seus princípios, seu desenho e projeto, podemos entender arete enquanto virtude, enquanto moderação, enquanto união de opostos, enquanto caminho do meio (como a flecha quando posta no arco). Cada tiro, então, aperfeiçoa nossa
virtude: moral, física, estética, guerreira. Dois epítetos de Apolo se aplicam a este conceito:  O primeiro, Alexikakos, significa “o que afasta o mal” e o segundo, Apotropaios, “o que repele”.

Seja superior ao prazer / Prefira aprender a não ter vontade de aprender.
Conta-se uma história onde Hércules, que era também um arqueiro, encontra numa bifurcação (Y) duas ninfas, Prazer e Virtude, que lhe ofereceram uma escolha: na primeira oferta, uma vida fácil e prazerosa ou, no caso da segunda, uma vida difícil mas que lhe traria glória ao final. Ele escolheu a segunda, tornando-se posteriormente o primeiro humano a ser levado aos céus olímpicos (apoteose). O “prazer” aqui não deve ser entendido como desfrutar das boas coisas da vida (Hércules também era famoso por seus apetites homéricos) mas, antes, o não ser subjugados por eles. O ser inativo. O não
aperfeiçoar-se ou trabalhar sobre si mesmo. Em nosso treino, é comum chegarmos a um ponto onde estamos confortáveis com nossos resultados, com a distância que atiramos e que já não apresenta mais desafios. É justamente nessa hora, que devemos escolher o caminho mais difícil, o mais severo e desafiador. Talvez seja o caso de mudar de arco, de mudar o estilo de tiro (arriscar começar de novo com o arco nudo, por exemplo). Ser superior ao prazer não é abandonar a vida. É não deixar de lutar. Não muito diferente de Hércules, nós também podemos combater certos monstros e injustiças.
Começando por nós mesmos. E para isso, é preciso estarmos dispostos não só a escolher mas também escolhermos aprender sempre mais. Não considerar nenhum ponto como “bom o bastante”. Um gráfico conhecido entre os técnicos de tiro com arco é o “S”: significando que o começo do aprendizado é rápido e muito prazeroso, onde o aluno rapidamente domina uma técnica (digamos, de ancoragem) e logo vê os resultados em grupos consistentes de flechas. Mas, depois de um tempo, demanda-se muito esforço para conseguir um leve avanço na contagem de pontos. Aqui, a tentação do “prazer” e de se
contentar com o estágio atingido e não mais aprender é muito grande. É hora de repetir a escolha de Hércules.

Esteja pronto para reconciliar-se após disputas / Contenha a ira.
Os gregos amavam uma disputa. Seja na arena esportiva ou na praça (ágora), os gregos sentiam grande satisfação em competir (agon). Hoje em dia, não é diferente em muitos stands de tiro com arco: mal se aprende a atirar, logo se está sendo convidado a participar de campeonatos (muitas vezes, dentro do próprio stand). Pode-se, é claro, usar isso como um treino mais profundo do que apenas marcar pontos: a concentração, a tranquilidade, a serenidade e etc podem ser aprimoradas sob a pressão que é um campeonato. Afinal, de todos os esportes, o arco é um dos que mais depende da mente do atleta. É nessa hora, também, onde estamos mais propensos a criar inimizades com o arqueiro ao lado que atirou melhor que você. A disputa deve ser encarada de maneira impessoal. Portanto, seja quais forem nossos sentimentos durante a disputa, logo após seu término devemos estar dispostos a começar de novo, a deixar que o passado se vá e acabe. Em uma competição, só podemos controlar um único tiro: aquele que damos neste exato momento. Os que já se foram, não podemos alterar. Os que ainda daremos, ainda não chegaram. Não vale o mesmo para todas as outras circunstâncias da nossa vida? Também é importante chamarmos a atenção para o nosso pior e mais constante inimigo: nós mesmos. Por mais que se dispute com outros arqueiros numa competição, no fundo, é a nós mesmos que devemos superar e vencer. E é em geral contra nós mesmos que lançamos toda nossa ira quando perdemos, quando após semanas de preparo, desperdiçamos tiros importantes. A ira nos cega e rouba de nós aquele equilíbrio que tanto buscamos. Com ela, somos incapazes de trilhar o caminho do meio. Ela é um estado de excesso. Fisiologicamente, a ira acelera nossa respiração e batimentos cardíacos, tornando nosso tiro mais errático e difícil de controlar. É preciso estar disposto a sempre se reconciliar consigo mesmo. Não apenas após o término de uma competição mas após cada tiro. Após cada falha (hamartia). Contra o alvo ou contra a vida.

Não faça nada pela força / Demonstre seu ponto pela persuasão e não pela força / Caso seja forte, seja também misericordioso, assim seus vizinhos o respeitarão ao invés de temê-lo / O poder revela o homem.
Um erro comum de todo novato com o arco é acreditar que para puxar e armar o arco deve-se usar a força dos braços. Nada poderia estar mais longe da verdade: um tiro bem executado é notório por sua beleza, graça, fluidez de movimentos e aparente leveza e facilidade. Para os gregos, o conceito de “bom” e “belo” (agathon e kalos, respectivamente) eram em geral confundidos e tidos como basicamente a mesma coisa. Assim, um tiro que seja tecnicamente “bom” deverá ser necessariamente “belo” – e vice-versa. Para um tiro consistente, estável e preciso, usamos não a força dos braços (que se cansariam rapidamente do esforço repetitivo de armar o arco) mas sim os poderosos grupos musculares das costas. Usa-se aqui muito mais a técnica (techné) do que a força. Com esta máxima anuncia-se um dos grandes princípios da ética grega e que mais tarde seria adotada pelos movimentos humanistas: a força bruta como último recurso. Usar a negociação, a conversa, razão (conceitos, estes, abarcados pela palavra grega “logos”) como o caminho típico e preferível aos seres racionais, civilizados que somos. Ou deveríamos ser. Empunhar o arco, uma poderosa arma, deveria ser uma lição nesse sentido: apesar de sua potência destrutiva, ele pode se tornar um símbolo do logos que atravessa a barreira da ignorância e atinge o centro do alvo, aquele ponto claro, distinto e brilhante que todos carregam em si mesmos. O autocontrole também se revela aqui por um outro viés: caso tenha muito poder ou força em suas mãos, recuse-se a usá-lo para fins egoístas ou mesquinhos. Revele sua força interior demonstrando clemência, misericórdia. Que sua demonstração de força seja de outra espécie: a de uma alma nobre
que conquistou a si mesmo; que não teme dar, pois seus dons e caráter fluem com abundância. O objetivo não é ser temido, mas respeitado. Se você é um arqueiro excelente, seja também o mais generoso com seu tempo, com sua solicitude para com aqueles que aprendem, para aqueles que olham
para você e o seguem como modelo.

Não ria dos desafortunados / Não reprove um homem por seu infortúnio, pois a Nemesis pode tomar conta de você / É difícil suportar uma mudança para pior na sorte com magnanidade.
Se existe algo que a vida nos ensina constantemente é que nossa fortuna é instável. Se numa hora estamos em uma fase de extrema sorte, onde tudo parece dar certo ou simplesmente entrar em nosso caminho, imediatamente, sem qualquer aviso, nos achamos no extremo oposto (daí a importância de sempre trilharmos e escolhermos o caminho do meio, de evitar os extremos ou de procurar por eles). O mesmo, é claro, vale para nosso nível durante os treinos. Almejamos constantemente a consistência nos tiros, na pontuação e nos movimentos. Mas muitas vezes basta um tiro errado para que todo o
nosso histórico de bons tiros desabe e nos peguemos num longo caminho de volta ao nosso ponto ótimo. Suportar isso de maneira leve e generosa (para com nós mesmos) não é fácil. É, de certa maneira, nossa luta mais difícil, intensa e longa. Motivo pelo qual não devemos rir ou zombar daqueles que se encontram nessa fase – e a tentação é grande! Um comentário irônico sobre um tiro errado, a postura ou até mesmo o equipamento de outro arqueiro pode arruinar um bom dia de treino. Tanto quanto tentavam evitar a hubris, os gregos temiam a nemesis: a vingança dos deuses contra os soberbos. Seria algo como uma “justiça kármica”. Heráclito costumava dizer que: “O sol não excederá as medidas; se o fizer, as Erínias, servas da justiça, hão de o encontrar.” Isto é, tudo aquilo que rompe o equilíbrio natural será punido e trazido de volta à sua harmonia e lugares originais. Insultar aqueles que lutam contra um infortúnio é, sem dúvida, uma forma de atrair para si algum tipo de nemesis. Não precisamos nem acreditar em “agentes do destino” ou “punição divina”. Trata-se de um fato da vida que mais tarde ou mais cedo nos alcançará. Ou, em outras circunstâncias, isso acabará gerando algum desequilíbrio interno, psicológico em nós que cobrará também o seu preço. O poder, como já vimos em outra máxima, não é apenas uma questão de força – mas principalmente de nobreza, de sermos melhores quando temos a chance de sermos piores.

Não tenha pressa em seu caminho / Delibere antes de escolher um caminho, mas uma vez escolhido, vá até o fim.
De uma certa maneira, todos nós procuramos um caminho. E sempre houve, em toda a história humana, diversos caminhos a serem escolhidos. Obviamente, cada temperamento e cada necessidade individual, fará com que essas escolhas sejam sempre únicas e pessoais. Analisar, ponderar, se informar sobre cada caminho é algo essencial e prudente. Uma vez escolhido um caminho, porém, se quisermos colher seus frutos integralmente, é necessário que o sigamos até o fim. Saltar de um caminho para outro, ser inconstante, é uma perda de tempo e, pior, em alguns casos, pode nos dar a falsa sensação de sermos “experientes” ou “sábios”. Depois disso, o verdadeiro trabalho começa: trilhar pacientemente esse caminho. Não querer colher os frutos antes do tempo. Certas jornadas não são medidas por passos, mas por tempos específicos (khairós) e marcos especiais. É preciso ouvir quem já trilhou esse caminho. Existe no arco, a mesma tentação: a de ficarmos trocando de equipamento, de modelo, de estilo de tiro – tudo isso em busca de maior pontuação. Esquecemos o básico. O trabalho de aprimorar a postura que deve ser feito desde o começo (é muito mais difícil corrigir um erro de postura após anos de tiro do que no começo). Cada caminho – assim como cada estilo de arco – tem suas próprias metas, critérios de sucesso e o ganhos particulares. Aqui, o segredo é a reflexão unida à prática constante e ininterrupta.

Obedeça às leis.
Já vimos que algumas escolas faziam uma oposição entre as convenções sociais (nomos) e as disposições naturais. Muitos acreditavam que essa era a fonte da infelicidade e a razão por trás de uma vida infeliz. Ao mesmo tempo, foram os filósofos gregos que primeiro observaram certas regularidades na natureza que acabariam gerando o nosso conceito moderno de “leis naturais”. O arco é em sua essência uma encarnação viva de diversos princípios da Física (em grego, physis, de onde vem nossa “Física” denota uma idéia mais orgânica, de algo que se conduz e gera a si próprio). Ao estendermos e dobrarmos o arco, estamos armazenando energia potencial que será transferida para a flecha, tornando-se energia cinética (entre outras). A própria forma do arco, depende de certas leis geométricas. Não é qualquer padrão ou curvatura que são adequados. A flecha também está sujeita a certas leis aerodinâmicas que determinam sua velocidade ou estabilidade. Portanto, para atirarmos, temos que obedecer a certas leis. Num sentido mais amplo, e dentro do espírito délfico e apolíneo, a “lei” tem o sentido de “limite”, de disposição racional (logos) – não tanto como algo imposto, um dogma ou um mandamento, mas um comportamento apropriado – criado por seres racionais e livres, fruto de reflexão ponderada – e não imposta de fora por algum deus ou princípio de autoridade. Heráclito dizia: “Os homens devem lutar por suas leis como pelas muralhas de sua cidade”. É nesse espírito, enquanto fundador e protetor das leis cívicas, que Apolo era chamado de Archegetes (“fundador”) e Agyieus (“protetor de ruas e casas”). O desregrado, o sem-lei, o descontrolado, sem medida era para a visão grega, algo feio, algo ruim. De novo, o conceito de “nada em excesso” aparece: a lei é a escolha do caminho do meio, o evitar os pontos extremos de qualquer situação. A lei, em sua função primordial, é justamente traçar esse limite.

O que quer que faça, faça bem.
A escola Estóica (que surgiria apenas séculos depois, durante o período Helenista), usava a imagem de um arqueiro para ilustrar o conceito de dedicar-se integralmente a um ato e fazer aquilo que precisava ser feito. Cabe a um arqueiro preparar-se da melhor maneira possível – seu equipamento, postura, prática. Contudo, no momento em que ele solta a flecha, não há mais nada a se fazer. A virtude neste caso está toda contida em fazer aquilo que deve ser feito da melhor maneira possível – sem se preocupar com os resultados (seja o sucesso ou o fracasso). Tornar-se sereno ao ponto de encara com igual estado de espírito qualquer resultado denota, sem dúvida, um profundo autoconhecimento e equilíbrio. A nós, seres racionais, cabe fazer aquilo que é próprio de nossa natureza (nossa Arete particular). De nada nos adianta cumprir o dever atribuído a outra pessoa ou outro ser. Não podemos nos medir em força com um leão (desejar isso seria, em conformidade com outra máxima, desejar o impossível). Devemos nos conhecer o suficiente para saber o que podemos fazer, se temos a força necessária. Se, em outras palavras, está em nossa virtude fazê-lo. E, se estiver, fazer da melhor maneira
possível. Faça com que cada tiro seja seu melhor.


Epsilon: letra que pendia sob a entrada do templo de Apolo, em Delfos.
Sobre o “E” em Delfos
O filósofo e sacerdote do Templo de Apolo, Plutarco, narra no tratado de mesmo nome, que logo na entrada do Templo de Apolo em Delfos, havia uma letra “E” (épsilon) dourada. Os personagens do diálogo discutem o possível significado dessa misteriosa letra. Por fim, concluem que essa letra nada mais é que a resposta apropriada à saudação de Apolo dirigida ao visitante.

Entre os gregos, a expressão mais utilizada para este fim é “khairé”, que significa “alegre-se” –  mas também tem outras conotações como a “graça” (lembre-se das três Khárites, que acompanhavam Afrodite), “beleza” e tudo que é belo e agradável. Apolo, porém, dirige-se a seus visitantes com o sóbrio e desafiante “Conhece a ti mesmo” (gnothi seauton) gravado em uma das colunas do Templo. Em resposta, Plutarco concluí, devemos dizer “EI”, representado pela letra épsilon. Essa interjeição significa “Vós sois” e é a única maneira apropriada de se dirigir a Apolo, ou seja, respeitando seu maior e principal atributo: o Ser. Uma vez que o mundo material é um fluxo constante (como Heráclito e outros apontaram) encontramos na Divindade, o absoluto, o imutável, o eterno. De fato, prossegue Plutarco, Apolo se caracteriza pela Unidade, isto é, ele é o “Não-Muitos”: A (partícula negativa em grego) – Pollon (“muitos”). Uma outra evidência da unidade (“união harmoniosa dos contrários”) em Apolo é evidenciada pela etimologia de uma antiga palavra para “arqueiro” Ihtox e sua semelhança com “um” iox = eix.

Parece, então, haver uma contradição entre a frase “Conhece a ti mesmo” e o “Vós sois” – de um lado a ignorância mortal e de outro, a sapiência divina. Porém, Plutarco mesmo esclarece que “a letra e é um apelo, um chamado erguido em admiração e louvor ao Deus, existindo por toda a eternidade” e dentro do espírito que temos estudado até então, conclui: “a frase é uma lembrete ao homem mortal de sua própria natureza e fragilidade”. Só Deus é. Nós, nos tornamos. Uma maneira de visualizar essa relação é a imaginarmos que Apolo, a Divindade, é o Alvo Supremo – imóvel, imutável, centrado – enquanto nós somos a flecha que, em movimento, se dirige ao alvo. Não há, é claro, nenhuma obrigação de pensarmos em Deus como existindo “lá fora”. Essa viagem da flecha ao Alvo pode ser feita interiormente. Somos assim, os arqueiros, a flecha e o alvo. Conhecermos a nós mesmos é conhecer Apolo, a Unidade Divina, o centro luminoso em nós mesmos.

Conclusão
Em sua obra, “Poética”, Aristóteles analisa o que, numa tragédia, constitui aquele momento onde a vida do herói sofre uma súbita reviravolta e ele se vê obrigado a enfrentar seu (fatal) destino. Esse momento em geral é precedido por um excesso de orgulho (hubris) e o termo que Aristóteles escolhe para caracterizá-lo é hamartia: uma expressão derivada do tiro com arco e significa muito simplesmente “errar o alvo”. Com essa escolha Aristóteles torna evidente uma metáfora entre a sabedoria necessária para uma boa vida e a semelhança com um disparo perfeito, que de maneira reta e determinada, atinge seu alvo. Esse também foi o principal mote e objetivo deste artigo: mostrar como através de uma reflexão constante sobre máximas inspiradas pelo espírito de Apolo, o deus patrono dos arqueiros e o treino (askesis) do tiro com arco, que mutuamente se reforçam, iluminam e esclarecem, podemos atingir também o alvo supremo de uma vida bem vivida. Como vimos, é através da virtude da sophrosyne (temperança, moderação, autoconhecimento), a virtude que em Apolo tem sua representação máxima, é que podemos transformar a prática (techné) do tiro com arco em um Caminho do Arco.

O arco da sabedoria que não é usado quebra facilmente (Teofrastos).

https://caminho-do-arqueiro.blogspot.com/2013/09/os-preceitos-delficos-e-o-caminho-do.html