O Simbolismo do Arco

O Simbolismo do Arco - Marcos Rogério Estevam (Junho / 2009)
 
Neste artigo pretendemos dar aos nossos leitores uma visão do simbolismo do arco tal como é visto pelas sociedades e textos Tradicionais. Não nos será possível fazer o estudo exaustivo e completo do tema (apenas a literatura indiana ocuparia centenas de páginas) mas esperamos fornecer textos e citações significativas que possam dar aos nossos leitores as chaves e direcções que permitam aprofundar os seus estudos e acertar no "alvo" supremo: o Espírito. 


O nosso estudo será dividido e começa por uma breve introdução histórica que mostra a antiguidade e o uso contínuo do arco até à invenção e disseminação das armas de fogo. A seguir trataremos de diversas interpretações simbólicas -- tais interpretações serão dadas de forma mais genérica e abstracta. A seguir faremos a incursão pelas sociedades Tradicionais para mostrar de maneira mais concreta como as interpretações da secção anterior
foram particularizadas nalgumas civilizações históricas. Finalmente, concluiremos com outro estudo simbólico que mostra o papel assumido metafisicamente pela figura do arqueiro.

  Breve história do Arco

O arco é das mais antigas armas  desenvolvidas pela humanidade. Encontramos pinturas e representações de caça e guerra que datam de há aproximadamente 35 mil anos, onde o arco já aparece proeminentemente. As flechas mais antigas que sobreviveram até aos nossos dias datam aproximadamente de há 9 mil anos e foram encontrados na Alemanha. Já o modelo de arco mais antigo conhecido foi encontrado num pântano da Dinamarca. É significativo também que o arco apareça praticamente em todas as civilizações e continentes com excepção do continente australiano. As maiores civilizações da história fizeram uso contínuo e frequente do arco como arma de guerra ou caça: egípcios, persas, partios, assírios, mesopotâmicos, babilónicos, hindus, coreanos, chineses e japoneses. 



Na Europa o arco teve grande proeminência entre os anos de 1066 e 1640 e, literalmente , mudou o mapa do continente. Igualmente significativa foi a influência do arco no subcontinente indiano e no grande império Mongol controlado por Genghis Khan. Após o século XVII o arco foi abandonado como arma de guerra, sendo utilizado para a caça recreativa ou desporto. De igual modo no Japão, aproximadamente na mesma época, o arco , que antes era empunhado orgulhosamente pelos samurais, tornou-se obsoleto na guerra graças à introdução de armas de fogo pelos europeus. E tanto na Inglaterra quanto no Japão, surgiram escolas ou sociedades de arqueiros que procuraram manter activas as antigas tradições. No Japão, isso ocorreu com a mudança da prática do kyujutsu ("técnica do arco") para o kyudo (o "Caminho do Arco") e foi essa modalidade que se tornou extremamente conhecida no mundo moderno com a publicação do livro "A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen" pelo filósofo alemão Eugen Herrigel. Já as sociedades europeias (sendo as mais famosas a Fraternidade de São Jorge e a Fraternidade dos Cavaleiros do Príncipe Artur) mantiveram em paralelo à prática do tiro a interpretação religiosa e ética (ainda que não iniciática) que era exigida aos seus membros (como seria de esperar, embora estas sociedades existam até hoje, o lado ético-religioso foi totalmente ignorado e, não obstante algumas "tradições" terem sido mantidas, possuem apenas carácter "social". Igualmente as escolas de kyudo foram-se aos poucos desviando da sua intenção original de serem "caminho marcial" (budo) e tornaram-se "clubes de arquearia", interessados apenas no aspecto exterior e competitivo do desporto).

  
Interpretações simbólicas
 
No mundo Tradicional cada objecto ou aspecto da vida é visto como reflexo de realidades superiores. O sagrado não é uma dimensão à parte da vida ou das actividades gerais. Ao contrário, é o grande ponto de referência que torna toda e qualquer actividade um "meio" ou "caminho" para a realização que transcende as limitações deste plano. No que diz respeito à interpretação simbólica do arco não é diferente.

A primeira interpretação simbólica que podemos atribuir ao arco, relaciona -se com o seu papel de "intermediário" entre o mundo superior ("Céu") e o inferior ("Terra"): as duas pontas ou extremidades do arco indicam, quando pronto para disparar a flecha, naturalmente e simbolicamente para estes mundos. Entre as duas extremidades, está a corda que as une e aproxima. Vemos aqui o equivalente da "Corrente Dourada" que une o "Céu e a Terra" apresentada na Ilíada, VIII.18. Ou seja, trata-se do simbolismo do Axis Mundi, o eixo do mundo, ao redor do qual revolvem todas as esferas planetárias e simbólicas. A mesma imagem aparece na narrativa bíblica da "Escada de Jacó" (Genesis 28:12, 13) e nas escrituras hindus, onde Agni Anikavat é chamado "filho do Céu e da Terra" -- Agni é visto como  a personificação do Fogo Sagrado utilizado nos ritos e "anika" significa a ponta da flecha. Na tradição nórdica, o eixo do mundo é chamado de Yggdrasil e ao seu redor estão os Nove Mundos. Yggdrasil é vista como gigantesca árvore e é por muitos interpretada como sendo um freixo, que é tradicionalmente considerada a melhor madeira para a fabricação de arcos.


Se colocarmos a ideia dos mundos superiores e inferiores não no eixo (verticalmente) mas como planos concêntricos (horizontalmente) teremos a imagem clássica do alvo. Ao centro (para continuarmos com a tradição Nórdica) teríamos a morada dos deuses, chamada de "Asgard" e progressivamente os demais mundos tais como Midgard (o plano material) até aos mais "externos" (ou seja, mais afastados do princípio central e espiritual) tais como Muspellheim (o reino das forças elementares, associadas ao fogo destrutivo). Assim representados, os mundos e o alvo formam a tradicional figura do "mandala" oriental.


Outra interpretação na mesma esfera de pensamento, é tomar o centro do alvo como o Sol e os demais círculos como as esferas planetárias da Tradição. O Sol, visto simbolicamente, representa o Espírito, as virtudes clássicas e heróicas e é, portanto, o "alvo" ou "objectivo" de todo aquele que trilha a senda espiritual. É também a representação bastante evidente do "centro" ou "núcleo" interior da pessoa. Na língua inglesa, o centro do alvo é chamado muito apropriadamente de "gold" (ouro, símbolo da luz e da imortalidade) e nos
alvos tradicionais o centro é geralmente de cor amarela (o próprio termo "alvo", ou "blanco" na língua espanhola, aponta para a cor "branca" do puro espírito ou da qualidade transcendente do Absoluto). Outra analogia pertinente dentro desse contexto é a dos raios do Sol como flechas disparadas em direcção à Terra. No mundo grego-romano, Apolo visto como Deus-Sol conferia doce morte aos seus eleitos através das suas flechas.


Por outro lado, também podemos interpretar o disparo da flecha em direcção ao alvo e ao seu centro como outra imagem do axis mundi (mas simbolicamente rebatido a 90º). Se  o visualizarmos desta maneira podemos dizer que o objectivo do arqueiro não é apenas "alcançar o centro" seguindo o caminho da "corrente dourada", mas também ir além das formas condicionadas ao trespassar o alvo. Ou seja, livrar-se das imagens e símbolos e entrar no reino que está para além da existência e da não-existência, o Absoluto Incondicionado (veja-se o conceito platónico do "Céu Trans-urânico", Fedro 247 C).


A flecha também possui o significado simbólico da "palavra alada" que atinge seu alvo certeira (veja-se as "Odes" de Píndaro). O recto entendimento era visto entre os gregos como o disparo perfeito. Também vemos esta imagem no Atharva Veda Samhita (I.1) ao chamar o arqueiro de "Senhor da Voz", torna evidente que a corda do arco corresponde à voz e a flecha ao conceito audível. Pensamos aqui imediatamente no uso de mantras e outras expressões sagradas com fins meditativos ou de poder, pois é dito no Aitareya Aranyaka II.5 que "impelida pela Mente, a Voz fala". Esta imagem da flecha disparada pelo arco ou a voz pela mente reforça o simbolismo "alado" que já vimos anteriormente entre os gregos. Igualmente, a flecha em voo pode representar um pássaro (em sânscrito "pattarim" que significa "alado") é tradicionalmente o símbolo do espírito livre da matéria.


A flecha colocada no arco, apresenta da maneira visual e inequívoca o conceito do "caminho do meio" -- uma vez que fica posicionada aproximadamente no meio do arco, entre os dois extremos, que como já vimos remetem para o "Céu" e a "Terra". Estamos portanto a lidar com a ideia da "harmonia". Entre os filósofos gregos, o pensamento de Heráclito é o que mais se baseia nesse conceito de harmonia, visto como ponto mediano ou de equilíbrio entre extremos:


"Eles não compreendem como, separando-se, podem se harmonizar: harmonia de forças contrárias, como o arco e a lira." (Frag. 51)


E igualmente:


"O arco (bíos) tem por nome a vida (biós) e por obra a morte" (Frag. 48)


Estas ideias correspondem exactamente ao espírito apolíneo resumido na sentença "Nada em excesso", que podem ser experimentadas na correta tensão aplicada para "dobrar" o arco e disparar a flecha.

Outro ponto de coincidência simbólica entre o mundo grego-romano e o hindu, está na representação do Deus do Amor e do Desejo como arqueiro: Kama entre os hindus e Eros/Cupido entre os greco-romanos. A actuação desses deuses ao inflamar o desejo e o amor naqueles que são feridos por suas flechas, assemelha-se ao actuar de Apolo e Ártemis, que como vimos, disparam de longe as suas flechas ocasionando a "morte iniciática" (simbólica ou literal) de homens e mulheres que foram por eles "eleitos". A associação da Morte e o Amor também não nos deve surpreender, já que está abundantemente demonstrada em diversos estudos simbólicos e através de imagens (evidentemente não podemos tratar desse assunto aqui, mas recomendo aos leitores interessados que procurem o ensaio "The Greek Sphinx" de Ananda K. Coomaraswamy) -- e retratam a passagem de um estado ou plano para outro ou, se preferir, à mudança interior provocada pela entrada da energia transcendente no indivíduo que o eleva ("amor") ou o leva para outro reino ("morte") de consciência (lembramos que os ritos de iniciação no mundo Tradicional também apontam para o simbolismo da "morte" ou "segundo nascimento").


Nas escrituras cristãs, em particular nos Evangelhos, a palavra que se encontra nos originais gregos para "pecado" é "hamartia". O significado desta palavra não tem as conotações moralistas, sentimentais e religiosas associadas à nossa palavra "pecado". Antes, significa literalmente "errar a marca" e refere-se, como deve ter ficado evidente, ao arqueiro que erra o alvo ao disparar a flecha (nas tragédias gregas, "hamartia" significa a "falha trágica", em geral excesso de orgulho, que trás a queda do protagonista). Quando interpretada dessa maneira, evita-se o excesso de culpa que pode paralisar a consciência bem como a sensação de "expiação" necessária ou "mancha" aderida à alma. Torna-se apenas questão "técnica" e de "prática". Novamente, encontramos nas escrituras hindus ideias semelhantes, onde o termo utilizado é "aparadh" significando "errar o alvo", "extraviar", "falhar", "pecar". No Taittiroya Samhita II.5.5.6 é dito que aquele que erra o seu alvo se faz pior (papiyan) enquanto aquele que acerta é como deve ser.
 
O Arco no Mundo Tradicional

Já temos agora diversos elementos e símbolos ao nosso dispor que nos permitirão aprofundar os nossos estudos com exemplos concretos de textos, ideias e mitos tradicionais que utilizam o arco ou a figura do arqueiro para transmitir conhecimentos ou práticas iniciáticas. Apenas para fins de exposição, iremos dividir esta seção em sub-seções relacionadas a áreas geográficas (Oriente, Oriente Médio e Ocidente) mas o leitor deverá ter em mente que , a rigor, não existe nenhuma separação em termos de doutrina ou simbolismo entre essas civilizações. Conforme já enfatizado por Julius Evola não existe nenhuma separação dentro do mundo Tradicional entre "oriente" e "ocidente": o que existe são civilizações que seguem os princípios Tradicionais e as que não seguem.


Dentro dessa esfera de ideias, ou seja, àquelas pertencentes ao que é típico do mundo Tradicional, encontramos aquela que se refere ao uso cerimonial ou mágico de objectos consagrados ritualmente para determinado fim. Não se trata de maneira nenhuma de "superstição", "fetichismo" ou "animismo" (utilizados aqui num sentindo antropológico e profano) mas antes de técnica precisa e bem determinada. Basta pensarmos nos ritos descritos no Rig Veda e naquilo que os romanos denominavam numen (para descrição mais detalhada consultar "Revolta Contra o Mundo Moderno" de Julius Evola). Embora não encontremos textos sobreviventes a respeito da consagração específica de arcos, podemos deduzir a existência de ritos associados a outros objectos em que de facto isso deveria ocorrer. A título de exemplo, narraremos a tradição associada a Héracles (Hércules) e a tomada de Tróia (seguiremos o texto da tragédia Filoctetes de Sófocles).


Hércules, como sabemos, representa o espírito heróico que, através do esforço, alcança a imortalidade Olímpica. Também representa a luta do princípio solar contra as forças do caos e matriarcais. Entre seus feitos contam-se os famosos "Doze Trabalhos" (sendo o 12 um número solar, relacionado ao ano) e a sua busca pelo Velo de Ouro (outro símbolo solar) juntamente com os Argonautas (empreitada essa que estava sob a bênção de Apolo -- cf. Argonautica). No que diz respeito a Tróia, fala-se de uma tradição em que apenas utilizando o arco de Hércules seria possível conquistar a cidade (é aqui portanto que se inseria a ideia de um objecto investido de poder superior). Tal arco estava sob a posse de Filoctetes mas que no caminho para Tróia foi abandonado numa ilha após ter sido picado pela serpente guardiã do templo da ninfa Crise (o Velo de Ouro também era guardado por um dragão -- voltaremos ao tema dos "guardiões ofidios" no final deste estudo), uma vez que tal ferida não curava e exalava cheiro insuportável. Abandonado à sua própria sorte, tinha apenas consigo o arco e as flechas herdados de Hércules. Finalmente, após anos de solidão e após um oráculo ter sido proferido indicando que apenas com o arco de Hércules seria possível reverter a situação, a delegação composta por Odisseu (Ulisses) e o filho de Aquiles, Neoptólemo, parte em direção à ilha rochosa. Como Odisseu tinha sido o culpado pelo abandono de Filoctetes este recusa-se a voltar e ajudar na conquista de Tróia. Não nos interessam aqui, todos os temas tratados ao longo da peça, mas apenas a intervenção final de Hércules (v. 1410 - 1440):


"(...) Fica certo de que a voz de Héracles
teus ouvidos escutam e teus olhos veem sua imagem.
Para te fazer um favor, as mansões celestes
deixei e venho
para te revelar as decisões de Zeus
e desviar do caminho que pretendes seguir.
Presta atenção às minhas palavras.


Em primeiro lugar, vou contar-te a minha sorte, os trabalhos que sofri e suportei, antes de adquirir a glória imortal que podeis contemplar. Também a ti, podes crer, te está destinada sorte igual: ter vida gloriosa, depois dos sofrimentos de agora.

(...) com as minhas flechas despojarás da vida a Páris (...) e arrasarás Tróia. Os despojos, enviá-lo-ás ao teu palácio (...). Mas o que receberes do exército em memória das minhas armas, leva-o ao meu túmulo.


A ti filho de Aquiles, dirijo também meus conselhos, pois nem tu podes tomar a cidade de Tróia sem ele, nem ele sem ti. Como parelha de leões que vivem juntos, deveis guarda-vos mutuamente: ele a ti e tu a ele.


Eu enviarei para Tróia Asclépios [Deus associado à cura, filho de Apolo, e cujo símbolo era a serpente], que te curará da enfermidade [Filoctetes] (...) Mas atendei ao seguinte: quando tiverdes devastado a terra, sede reverentes para com os deuses. Zeus Pai considera de somenos tudo o resto. É que o respeito pelos deuses não perece com os mortais. Quer eles vivam, quer eles morram, não se desvanece."


Neste longo trecho citado, encontramos diversos temas e símbolos Tradicionais (tais como o "leão", símbolo do sol, da luz, do espírito; a imortalidade Olímpica e o culto ao herói) -- mas não poderemos nos deter neles. Fica claro, contudo, que o uso do arco como arma ritual está plenamente presente nas imagens evocadas aqui.


O leitor atento seguramente percebeu a semelhança simbólica e estrutural com outro tema Tradicional: a demanda do Graal. Que sirva de modelo esquemático apenas o seguinte (para um estudo mais profundo destes temas, consultar "O Mistério do Graal" de Julius Evola):


Filoctetes/Neoptólemo/Arco/Ilha/Tróia
Amfortas/Parsival/Graal/Castelo/Terra Devastada


Outra ideia de capital importância e que deve ser mencionada e mantida em mente pelo leitor é o uso do arco como arma típica da realeza ou da aristocracia guerreira. Nos exemplos que apresentaremos abaixo, esse tema irá reaparecer constantemente. Ou seja, dentro da visão Tradicional das castas, o arco será predominantemente empunhado pela casta do guerreiro, do rei-sacerdote, do herói solar (existe a notável, mas não surpreendente, exceção: a Europa cristã, onde o arco era visto com desprezo pela nobreza mesmo quando a sua eficiência na guerra era palpável). O valor do arco só foi devidamente apreciado após a introdução das armas de fogo. Antes disso, embora valorizado na guerra por alguns monarcas e sua prática incentivada, não se podia encontrar associado ao arco nenhum simbolismo heróico ou transcendente tal como nos iremos  referir aqui. Tanto é assim que nos primeiros manuais escritos sobre o uso do arco, o Toxophilus, de Roger Ascham, faz-se extensivo uso de fontes gregas ou símbolos clássicos, tal como Apolo, para justificar o uso e a nobreza do arco, pois não poderia encontrar tais símbolos dentro da tradição cristã).


O Arco no Oriente

Já tivemos a oportunidade de mencionar a prática do Kyudo, como Caminho Marcial que visa, na sua forma original, não apenas a perícia técnica mas também o desenvolvimento harmonioso do corpo, mente e espírito. O Kyudo sofreu grande influência do Xintoísmo e guarda até hoje, na sua forma ritual, traços dessa influência. Existe uma cerimónia em particular que consiste no tanger das cordas do arco para afastar todas as influências e espíritos inferiores do ambiente. No kyudojo (o lugar onde se pratica o Kyudo) é comum haver um altar dedicado a um kami (semelhante ao numem romano) e entre as divindades xintoístas Hachiman, o Deus da Guerra, é retratado a segurar o arco. Além da prática que poderíamos chamar de "desportiva" existem disparos que são realizados cerimonialmente e visam outros fins que não apenas "acertar no alvo". Diversos termos aplicados ao aspecto técnico do Kyudo também fazem referência a aspectos espirituais. Entre eles, queremos destacar o termo zanshin: após o disparo, o praticante deve manter a sua postura e concentração. O termo pode ser traduzido como "corpo (ou espírito) remanescente" e deve ser visto como a reverberação do sino. É o estado em que o espírito flui conjunto com o tiro, e forma a unidade entre arqueiro, alvo e flecha.

Na China, encontramos o ritual realizado quando nascia o herdeiro real, que consistia em 6 disparos feitos pelo arqueiro mestre em direção ao Céu, à Terra e aos 4 quadrantes (Li Chi X.2.7). O mesmo é dito acontecer no Japão. Ora, tais disparos equivalem a simbolicamente  a unir, com um raio de sol, todos os mundos.


Nas tradições da Índia, encontramos a história de Rama, o herói solar que combate os demónios das trevas e do caos, liderados por Ravana. Considerado  avatar de Vishnu (em muitos casos comparado a Apolo), Rama é chamado de Maryada Purushottama, literalmente "O Homem Perfeito", ou seja, "iniciado" e a sua vida é o exemplo de realização do dharma ( caminho específico atribuído a cada pessoa, pela sua casta, para  maior realização espiritual). A história gira ao redor do rapto de Sita, sua esposa, por Ravana. Ora, na Tradição hindú a "mulher" ou "esposa" é vista como a personificação do "poder" (shakti) associado ao Deus. Entre os feitos que Rama realiza, o primeiro está relacionado com a "conquista" da sua shakti: Vishwamitra convida dois príncipes Rama e Lakshmana para disputarem a mão de Sita, através da prova de curvar o arco de Shiva e disparar a flecha com ele.  Visto vez que essa é a arma de Shiva, nenhum rei mortal seria capaz de alcançar o feito. Contudo, Rama ao tentar colocar a corda no arco, simplesmente o parte em dois. Tal acto de força, espalha -se por todos os mundos e Rama conquista a mão de Sita. Porém, um rishi chamado Bhargava  ao saber de tal feito não consegue acreditar e decide testar Rama. Alegando ser o sexto avatar de Vishnu ele apresenta-se perante Rama com o arco de Vishnu e novamente  o desafia a colocar a corda no arco. Rama respeitosamente curva-se perante o sábio-eremita e, num piscar de olhos, rouba-lhe o arco das mãos, coloca a corda e aponta a flecha para o coração do desafiante. Reconhecendo a sua derrota e que Rama lhe é superior, ele abandona o mundo dos homens. Rama então dispara a flecha com o arco de Vishnu para o céu em conformidade com a sua natureza divina e diz-se que a sua flecha ainda hoje viaja pelos mundos -- quando ela retornar a este mundo, marcará o seu fim. Outra tradição também afirma que a flecha ao voar destrói todo o mal e fortalece o dharma e a justiça. Note-se que como é comum em objectos consagrados ritualmente, o arco de Rama tem um nome, que é Kodanda.


Outro exemplo bem conhecido pode ser encontrado na Bhaghavad Gita, onde o arqueiro Arjuna é instruído por Krishna na doutrina aristocrática e guerreira do "yoga da ação". Arjuna é geralmente visto como o ego humano que é instruído pelo divino instrutor, o Espírito, e a guerra entre as duas facções inimigas é vista como combate simbólico e interior entre a natureza inferior e superior do adepto. Desnecessário dizer que a exposição apresentada no Gita é a melhor e mais clara doutrina da espiritualidade guerreira disponível para nós. É explicitamente dito que tal ensinamento já tinha sido revelado noutros ciclos, e que novamente estava a ser ensinado através da "dinastia solar", Suryavansa . O grande ensinamento contido aqui é dirigido à casta dos guerreiros, kshatrya e gira em torno do conceito de katam karaniyam, ou seja "fazer o que deve ser feito", de maneira impessoal, sem apegar-se aos frutos das suas obras, indiferente ao sucesso ou ao fracasso, dor ou prazer, sem se preocupar com "vantagens" advindas da realização daquilo que é visto como sua lei interna (dharma). No épico Mahabharata, no qual se insere o Gita, Arjuna é visto a realizar disparos de incrível destreza. É-nos dito que apenas ele era capaz de manipular o seu arco correctamente e que, à semelhança do arco de Rama, também possui nome, Gandeva.


As escrituras hindus fazem a comparação dos dois braços do arqueiro com dois deuses Mitra e Varuna, reunindo, no arqueiro, as duas figuras do "rei e sacerdote". É portanto em sua condição de kshatrya que tanto Rama quanto Arjuna são capazes de realizar as obras que realizaram bem como receber os ensinamentos solares.


No Mundaka Upanishad encontramos o resumo desses ensinamentos e  das mais interessantes descrições do papel simbólico do arco:


"Tendo segurado o arco, deixe-o colocar a flecha, afiada pela devoção. Então, após armá-lo com pensamento dirigido àquilo que é, atinja o alvo, oh amigo -- o Indestrutível. OM é o arco, o Eu é a flecha, Brahman [O Absoluto] é chamado o seu alvo. É atingido pelo homem que não é insensato, e assim como a flecha se torna una com o alvo, ele se tornará um com Brahman. Conheça apenas Ele como o Eu, e abandone outras palavras. Ele é a ponte para o Imortal. Medite no Eu como OM. Salve aquele que pode cruzar para além do mar da escuridão".


O Arco no Oriente Médio

Da mesma maneira que na China e no Japão era feito o disparo ritual aos 4 quadrantes, também encontramos no Egipto o mesmo ritual mas dessa vez durante a cerimónia de entronização do faraó. Como é sabido, o faraó era visto como encarnação de Hórus, o deus falcão, símbolo do Sol, que vingava a morte do Deus Osíris, seu pai , que fora desmembrado pelas forças do caos personificadas em Seth. Uma outra variação deste rito consistia em soltar 4 passáros -- mas como já vimos "pássaros" e "flechas" possuem um significado simbólico semelhante. Em várias estelas, monumentos e templos os faraós são normalmente retratados em carros de guerra, segurando os seus arcos armados. Em particular, Ramsés II era tido como arqueiro bastante talentoso.


Dentro da tradição islâmica, é dito que o profeta Maomé era habilidoso com o uso do arco. Alega-se que 5 de seus arcos foram conservados e podem ser vistos em museus árabes. Como se sabe, o Alcorão é considerado revelação direta de Deus (Allah) através do arcanjo Gabriel para o profeta. Contudo, alguns ditos (hadiths) considerados inspirados mas não revelados, também gozam de particular veneração e são constantemente consultados para todos os aspectos da vida. Dentre esses hadiths, contam-se aproximadamente 40 relacionados com o arco (Sacred Archery: The Forty Prophetic Traditions, Katih Abdullah e Mustafa Kani) -- vejamos alguns:


"Aquele que faz a flecha, aquele que apresenta a flecha e o que dispara a flecha estão destinados ao paraíso."


"Ensine às suas crianças a ler o Alcorão e atirar com arco" [Platão, nas Leis, também aconselha que as crianças sejam treinadas desde cedo na prática do tiro com arco].


"Os espaços entre onde a flecha é disparada e onde ela cai são jardins do paraíso para vocês."


Existem três passatempos criados para o homem, que Allah aprova: "Andar a cavalo, atirar com arco e fazer amor com sua mulher."



Outro hadith diz que Maomé atirava com o arco para afastar a tristeza e a preocupação.

Uma tradição alcorânica também afirma que foi Gabriel quem revelou a Adão o uso do arco, com as palavras: "Este arco é o poder de Deus; esta corda, sua majestade; estas flechas são a cólera e o castigo de Deus para os seus inimigos". Desde Adão, tal ensinamento foi sendo transmitido através da "cadeia" de profetas até Maomé (a mesma ideia da "Cadeia Dourada" de Zeus), cujo companheiro Abi Waqqas, "o paladino do Islão", foi o primeiro que disparou contra os inimigos do Islão, tornando-se assim o padroeiro das ordens turcas de arco e flecha, cuja transmissão iniciática nunca se interrompeu (talvez, quem sabe, apenas muito recentemente). Vamos passar brevemente pela cerimónia de iniciação de tal ordem (acompanhando a exposição de Amanda Coomaraswamy em "El Tiro con Arco"):



Estas ordens são realmente iniciáticas e mesmo com a introdução das armas de fogo, o caráter sagrado do arco não se perdeu, e onde só é possível entrar por qualificação e iniciação. No que diz respeito à organização elas são regidas pelo  "sayj do campo" e toda  a qualificação fica a cargo do mestre (usdat). Ao ser aceite, o discípulo deverá passar pelo rito em homenagem às almas de Abi Waqqas, dos arqueiros iman de todas as gerações e todos os arqueiros crentes. O mestre transmite ao aspirante o arco com as palavras:
"Segundo o costume de Allah e do Caminho (sunna) do seu Evangelho escolhido...", o aspirante então recebe o arco, beija a empunhadura e o arma. Quando finalmente se torna hábil, então a aceitação formal por parte do sayj acontece. Após algumas provas demonstrando a sua habilidade e com a aprovação do sayj, o candidato ajoelha-se e levanta o arco em direção ao sayj, que o arma e coloca a flecha na corda, por três vezes, de acordo com regras rituais bem estabelecidas. O sayj então instrui o mestre de cerimónia para que leve o discípulo ao seu mestre de quem receberá a empunhadura (gabza) -- que nada mais é que o símbolo exterior da sua iniciação. Ele ajoelha perante o mestre e beija a sua mão; o mestre toma a sua mão direita em sinal de vínculo (cujo modelo é o Alcorão, XLVIII. 10-18) e sussurra o "segredo" no seu ouvido. O aspirante agora é  membro da ordem dos arqueiros e elo na "cadeia" que remete até Adão. A partir de então não  usará mais o arco a não ser que esteja ritualmente puro, antes e depois de usar o arco beijará sempre a sua empunhadura. Ao disparar a flecha, também irá entoar "Deus é Grande!" (note-se o uso da fórmula mântrica, como já notado acima. Nesse contexto, esta frase é simbolicamente vista como  "flecha espiritual" atirada pelo discípulo juntamente com a flecha "fisica" disparada pelo seu arco). A empunhadura como símbolo merece mais a nossa atenção: ela é vista como a parte "média" do arco e é a chave para o "segredo" comunicado ao discípulo. Assim como vimos mais acima, alude à harmonia e à justa medida que permite disparar a flecha de maneira equilibrada. No contexto que discutimos aqui, a empunhadura é o elo entre Maomé e Allah, e é o que une as duas metades do arco, tornando-o "uno". Também pode ser visto como  símbolo do Axis Mundi, ou na terminologia islâmica, como o Qutb.

O Arco no Ocidente

Na tradição nórdica encontramos no Edda Poético a história de como o Deus Heimdall (aqui chamado de "Rig" uma palavra irlandesa para "Rei") que ao andar pela Terra (Midgard) gerou as três castas ou classes que compunham a sociedade viking: a dos escravos (thrall), dos fazendeiros e dos nobres. A maneira como as castas (ou melhor, os descendentes de cada casta) são gerados é semelhante para cada uma delas: Rig  hospeda-se por três dias na casa de um casal "arquetípico" e sempre dorme entre eles por três noites. Os filhos de cada casal, possuem nomes simbólicos das suas funções. É assim que caminhando pela Terra e já tendo gerado as castas anteriores, Rig se encontra com "Pai" e "Mãe" que darão origem à classe aristocrata e guerreira de nobres conhecidos como jarls. É significativo que uma das ocupações de Pai é justamente a de confeccionar arcos, flechas e cordas (Rigsthula, 28). Após as três noites, como nos outros casos, Pai e Mãe concebem  o filho gerado por Rig cujo nome é "Senhor". E assim como o seu pai, especializa-se nas atividades guerreiras: equitação, natação, confecção de arcos e flechas, caça, lutar com espadas e escudos etc ( Rigsthula, 35). Contudo, ao contrário do que aconteceu com os outros casais, Heimdall (Rig) retorna para não apenas revelar a Senhor que ele é seu filho, mas também para ensinar-lhe o uso das Runas.


As Runas eram as letras utilizadas no alfabeto nórdico e também tinham funções mágicas e oraculares. O significado de "runa" é "mistério". Seu uso ia desde inscrições tumulares e pedras cerimoniais até propósitos de cura e proteção. Foram encontradas flechas, espadas e lanças com Runas gravadas. Observe-se então que mais uma vez temos a confluência do "rei-sacerdote" (as Runas foram o dom de Odin, o deus da guerra, da poesia, da magia e da morte entre os nórdicos. É significativo que Odin tenha feito o sacríficio  de si próprio, enforcando-se e ferindo-se por sua lança, na Árvore do Mundo, Yggdrasil, para obter o conhecimento das Runas). Assim como o arco era basicamente utilizado pela nobreza -- tanto na guerra como na caça -- igualmente as Runas o eram. 



Entre os deuses nórdicos encontramos Ullr, o deus caçador e arqueiro, cujas flechas podiam ser vista nas "luzes do norte" (a aurora boreal), habitando as regiões longíquas e desoladas do norte (ele era associado ao inverno e à morte). Ullr era particularmente invocado para combates individuais e patrono dos juramentos feitos sobre um anel sagrado. É dito que Ullr habita uma região em Asgard conhecida como "Ydalir", que significa "Vale dos Freixos" -- como já vimos, esta é uma da melhores madeiras para a fabrico de arcos e está associada com a Árvore do Mundo, Yggdrasil. Outra deusa que tinha características semelhantes era Skadi -- também associada às montanhas geladas, à caça e ao arco. Ambos possuem características tão semelhantes que alguns estudiosos já cogitaram a relação mais próxima entre eles -- tal como de marido e mulher ou irmãos. Essa inferência é ainda mais forte quando analisamos os seus nomes: "Ullr" deriva da antiga palavra para "Glória" que era associada ao céu, e por extensão ao Pai-Céu adorado pelos povos Indo-Europeus (tal como Zeus entre os gregos), e que representa a espirituailidade Olímpica e o Absoluto. "Skadi", por sua vez, significa "sombria", é associada assim à Mãe-Terra. Ora, encontramos  relação semelhante entre Apolo (Sol) e sua irmã gêmea Ártemis (Lua), ambos, como já vimos arqueiros.

Ainda dentro da análise dos nomes, é significativo apontar para o facto que "Heimdall" pode ser traduzido como "O Arco do Mundo", o arco-íris, que era visto como a ponte entre o mundo dos Deuses (Asgard) e o mundo dos humanos (Midgard). Heimdall, além da função civilizatória e iniciática que vimos acima, tinha como principal papel guardar a entrada do mundo divino e avisar aos deuses, ao tocar a sua trompa, do avanço dos gigantes de fogo saidos de Muspellheim para combater os deuses durante o final do ciclo do presente universo. O equivalente hindu de Heimdall é o deus Agni, que como já vimos se relaciona com o Fogo purificador do ritual.


Ainda temos algo mais a falar sobre Apolo. Como é sabido, este deus é visto como o símbolo da Tradição Hiperbórea e de todas as qualidades viris, heróicas e solares do mundo greco-romano. No Hino Homérico a Apolo Délio (5), vemos a reação dos deuses quando ele chega ao Olimpo:


"Todos os deuses tremem
Quando ele entra na casa de Zeus
todos se levantam quando ele se aproxima
todos se levantam de seus assentos
quando ele arma o seu brilhante arco"

E é o próprio Apolo quem diz de si mesmo (130):


"A lira e o arco recurvo eu amarei
E revelarei aos mortais
A infalível vontade de Zeus"


Já vimos quando citamos os fragmentos de Heráclito como esta passagem pode ser interpretada -- ou seja, em Apolo reúnem-se harmoniosamente os contrários. Além disso, tomamos conhecimento de outra função exercida por ele: revelar (ou personificar) a vontade de Zeus (o princípio transcendente, o Absoluto, o Incondicionado) para os homens -- agindo portanto como o "Lógos" do universo. E de facto, através de seu oráculo em Delfos, Apolo deu aos homens as duas maiores máximas da sabedoria clássica: "Conhece-te a ti mesmo" e "Nada em excesso". Tal sabedoria, calma, refletida, simples, directa e impessoal  traduz-se nas 4 virtudes clássicas de temperança, coragem, prudência e sabedoria.


Ao mesmo tempo que Apolo é o revelador da vontade de Zeus (o filósofo estóico Epicteto nos seus Discursos (III.1) cita Apolo como modelo para o sábio estóico, dizendo que aquele revelará a vontade de Zeus independente do uso ou reconhecimento que os homens farão deste conhecimento. Apolo irá cumprir com o seu dever, "fazer o que precisa ser feito", independentemente dos resultados. Já vimos essa atitude anteriormente) -- Apolo é também o guardião dessa vontade e dos seus mistérios (Hino Homérico a Hermes 535):


"(...) Fiz um juramento poderoso
que ninguém exceto eu mesmo
entre os sempieternos deuses
conhecerá a profunda vontade de Zeus
(...) não me peças para revelar os divinos segredos
que a visão longíqua de Zeus contempla".


Dentro dos textos clássicos ocidentais merece destaque a Odisseia que narra as aventuras iniciáticas de Odisseu (tido entre os estóicos, juntamente com Hércules, como símbolo e modelo do sábio ideal -- ambos excelentes arqueiros). Entre as cenas mais famosas e importantes está a do disparo magistral feito por Odisseu (Livro XXI): após 20 anos longe de casa, a batalhar 10 anos em Tróia e perdido à deriva por mais 10, finalmente Odisseu chega à sua casa, na ilha de Ítaca da qual é rei. Contudo, ele descobre que o seu palácio está ocupado pela horda de pretendentes ao trono e à mão da sua esposa, a rainha Penélope. Após plano elaborado com ajuda da deusa Athena (que simboliza métis, a mente engenhosa -- note-se que Athena compartilha com Skadi o título de "Dama Guerreira") Odisseu consegue estar presente na sala onde será efetuada a prova que, inspirada mais uma vez por Athena, Penélope arquitetou para escolher pretendente: aquele que fosse capaz de dobrar e colocar a corda no poderoso arco de Odisseu e disparar uma flecha por entre 12 machados (através do "anel" que havia no final de cada cabo) seria o escolhido. Desnecessário  será dizer que nenhum pretendente conseguiu fazê-lo. Odisseu, até então disfarçado de mendigo, solicita que lhe seja dada a chance. Debaixo de tremenda zombaria os pretendentes resolvem deixá-lo tentar, antecipando mais momentos de troça. Nesse momento então Athena devolve a Odisseu seu "aspecto divino" e ele se revela não só capaz de dobrar o arco como de efectuar o disparo, cuja corda, diz o poeta, "canta belamente" (lembre-se o leitor do simbolismo da "voz" e da "flecha"). É muito significativo que esta prova aconteça exactamente no que o texto chama a "festa de Apolo" e que Odisseu, antes de efectuar o disparo, clame: "Apolo, dai-me glória!" (Livro XXII). Esta cena é claramente decalcada de simbolismos solares (os 12 machados, a flecha com raio que os atravessa, a festa de Apolo, o rei que mata os inimigos) e  neste momento  já estamos aptos a interpretar os outros símbolos que aqui aparecem e fazer as conexões necessárias com os outros ensinamentos que já vimos.


O Arqueiro como Guardião

Se o leitor nos acompanhou até aqui, seguramente, notou o ressurgimento de diversos temas associados ao arqueiro -- em particular o facto de pertencer à linhagem real e guerreira e  a sua forte vinculação ao arco. Todos esses heróis e figuras divinas, são submetidas a provas semelhantes (tais como o esticar do arco) que só podem ser realizadas por ele ou provações específicas (o roubo da mulher), aparecem repetidas vezes. Percebe-se que arco e arqueiro estão unidos ou "destinados" um ao outro de maneira especial. Tais provas e tal vínculo são sinais exteriores da realidade interior e também são vistos como sinais de  missão muito específica. O leitor poderá então perguntar o que todos esses símbolos significam e a razão porque esses temas se repetem ao redor do mundo e em diversas civilizações, ao ponto de se pensar se não estamos de facto perante a mesma figura divina que se apresenta de diversas formas, repetindo a mesma missão ou passando o mesmo ensinamento simbólico.


Qual é, afinal, a principal missão associada ao arqueiro? 



Para respondermos a essa questão, tocaremos brevemente no simbolismo associado às figuras do querubim/serafim, da esfinge grega, do escorpião e da serpente/dragão. Vamos utilizar os estudos realizados por Coomaraswamy no seu livro "Guardians of the Sun-Door". Uma vez que não podemos oferecer em todos os detalhes as provas, evidências e estudos iconográficos realizados pelo autor remetemos o leitor a esta obra e nos contentaremos aqui em oferecer a largos traços as teses e conclusões apresentadas naquele estudo.

A primeira evidência que o autor nos apresenta está baseada na iconografia do Sagitário, que aparece desde a Assíria e Mesopotâmia atravessando o Egito, o mundo grego e oriental. Essa figura aparece invariavelmente a combater ou associada ao dragão ou outras figuras que lembram serpentes ou ofídios. Também encontramos o escorpião como inimigo ou em forma de quimera associado ao sagitário. À parte dessas figuras, também encontramos figuras aladas -- tais como a esfinge grega, as harpias, pássaros encantados -- como Garuda na Índia e a águia de Zeus na Grécia -- que aparecem como "raptores" da bebida sagrada, do herói ou condutor da alma até às moradas celestes (aqui encontramos a figura do psicopompo ou das Valquírias da tradição nórdica e ainda as Harpias gregas, que agem sob a vontade de Zeus). Outro papel exercido por estas figuras é o de guarda de lugares sagrados -- na tradição judaico-cristã temos as hostes angélicas dos querubins e serafins, que guardam o Jardim do Éden e o Trono de Deus, respectivamente. Na mesma função, encontramos grandes serpentes aladas ou dragões que guardam tesouros, entradas ou servem de guardas pessoais (entre os gregos era assim que se representava o agathos daimon). Vimos que foi graças à serpente guardiã que Filoctetes recebeu a ferida fatal, e o Velo de Ouro também era guardado por um dragão. Além disso, Apolo precisou matar a serpente Píton antes de tomar posse do oráculo em Delfo. Se por um lado podemos interpretar o confronto do arqueiro com a serpente/dragão como sendo a ilustração das forças da ordem subjugando as do caos, num plano superior podemos interpretar de outra forma. Como temos afirmado, a serpente nada mais é que outra manifestação do princípio guardião apresentando-se, porém, de forma telúrica ou "inferior". Ao ser derrotada pelo numem solar (Apolo) ou pelo herói (Hércules/Jasão no caso do Velocino), tratase apenas da legítima posse do princípio superior sobre a manifestação inferior. No caso de Filoctetes vemos o herói ainda não preparado, ou iniciado, sendo incapaz de controlar a energia ou princípio guardião.



Desta maneira, ao longo do tempo, todas essas figuras (o arqueiro, o dragão, a serpente, a esfinge, o ser alado) e símbolos foram sendo misturadas e transmigraram. E é nesse ponto que podemos juntar todos os fios que viemos desenvolvendo ao longo deste estudo: o arqueiro é por excelência o guardião dos lugares sagrados e dos ensinamentos sagrados!

A figura do arqueiro, seja como o sagitário, o herói solar, o querubim, a serpente alada, tem como principal missão a purificação do mundo e a proteção dos símbolos Tradicionais e das "portas" que dão acesso aos rituis de iniciação em toda as civilizações Tradicionais. Com   o seu arco e as suas flechas, o sagitário mantém à distância os que não são dignos e também ataca os inimigos que se apossam do tesouro, do Jardim, da Mulher Sagrada ou que ousam desafiar a Encarnação Divina (avatar). Como Apolo, são os guardiões da profecia e da vontade divina.


Não sem forte componente simbólico, é interessante notar que a constelação de Sagitário "mira" diretamente para o centro da nossa galáxia -- uma imensa esfera de luz, que pode muito bem servir de símbolo para o centro espiritual e divino do cosmos e do indivíduo, da mesma maneira que o Sol sempre o foi.


Conclusão

Hoje em dia, não é já possível encontrar na nossa sociedade as estruturas Tradicionais que permitiriam o desenvolvimento espiritual associado à prática do arco como atividade simbólica, metafísica e iniciática. O único conselho que pode ser dado a quem quiser utilizar o arco além da prática desportiva, mas também como  instrumento de contemplação e "ascese", deverá fazê-lo por conta própria, através da interiorização dos símbolos e ensinamentos brevemente esboçados aqui. Seja como for, estes símbolos ainda podem falar e guiar se tivermos nas mãos as chaves Tradicionais para isso. Não foi outro o objetivo deste nosso breve estudo.


Homenagem a vós, oh portadores das flechas
e a vós, oh arqueiros!
Homenagem!
Homenagem a vós, oh flecheiros,
e a vós, oh fazedores de arcos!
(Taittiroya Samhita, 5.3.2 e 4.2)

https://kyudo-pt.blogspot.com/2010/04/o-simbolismo-do-arco.html


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